Gn 1-5
1No princípio, criou Deus os céus e a terra.
2A terra, porém, estava sem forma e vazia; havia trevas sobre a face do
abismo, e o Espírito de Deus pairava por sobre as águas.
3Disse Deus: Haja luz; e houve luz. 4E viu Deus que a luz era boa; e fez separação entre a luz e as trevas. 5Chamou Deus à luz Dia e às trevas, Noite.
Houve tarde e manhã, o primeiro dia.
O modo como vemos o mundo molda o modo como vivemos nele. As
concepções atuais sobre o mundo variam do empirismo (que afirma que tudo que
percebemos não passam de estímulos desconexos que são interpretados por nós, na
tentativa de criar uma ilusão de que há sentido na vida) à religiosidade
baseada em seres espirituais bons e maus que afetam caprichosamente nosso
dia-a-dia. Assim, o mundo ao redor é ou sem sentido, ou um lugar de
possibilidades (muitas vezes ruins) que nos surgem sem aviso.
Um mundo desconfortável, como nos diriam os estressados,
os depressivos e os suicidas. A fim de sobreviver nele, buscamos ajuda de elementos
que nos tragam uma sensação de segurança: dinheiro, beleza, um bom currículo,
entidades e deuses, contatos, fama... Cada contexto tem seus estímulos, chefes,
entidades, regras. Viver tornou-se fragmentado: diferentes papéis, regras e
éticas para diferentes situações, lugares, tempos e pessoas. De modo que crer
em um só Deus, e viver de um modo coerente com Ele, tornou-se um desafio.
Um desafio não menor do que tiveram os hebreus que saíram
de um mundo conhecido (o Egito) e iam para Canaã (o mundo novo e desconhecido).
Estavam entre dois lugares que afirmavam coisas semelhantes em relação ao
mundo, como ele funciona e como se dar bem nele. Não foi à toa que quando as
coisas ficavam complicadas a ideia de voltar ao Egito, ou de fazer um bezerro
de ouro (como o deus egípcio Ápis), era tão atraente: era um jeito “comprovado”
de resolver as coisas.
Havia o risco das trevas/ morte que sempre ameaçavam os
egípcios e os cananitas. Sol e mar eram deuses que poderiam estar contra ou a
favor de você. As estações e a seca eram vistas como a ausência ou a fúria de
um deus. Quando você queria plantar, precisava agradar o deus da fertilidade;
quando queria pescar, precisava prestar culto ao deus do mar. A vida era
fragmentada, incerta e cansativa, pois era preciso agradar a “gregos e
troianos”.
A fim de manterem-se fieis a Deus, os hebreus precisavam
conhecê-lo, bem como Ele se relacionava com os “outros deuses” que concorriam
com Ele. Assim, Gênesis 1 começa com a concepção de início do Oriente Próximo
daquela época: A terra, porém, estava sem
forma e vazia; havia trevas sobre a face do abismo, e o Espírito de Deus
pairava por sobre as águas. (v.2). Além disso, lida com elementos que eram
tidos como deuses ou representantes deles: o sol, as trevas, o mar, os animais...
O objetivo deste texto não é tanto dizer que há um só Deus (outras partes da
Bíblia dizem isso com muito mais clareza), muito menos trazer o cronograma da
criação do mundo (os 6 dias são colocados em paralelos: 1º e 4º, 2º e 5º, 3º e
6º; não em seqüência lógica), mas sim mostrar a grandeza de Deus de tal forma
que a busca de qualquer outro “deus” pareça perda de tempo. Uma receita
poderosa para todos os encontros com novos povos e crenças.
Aqui, Deus é o criador de todas as coisas, incluindo o sol
e o mar. É Ele quem põe ordem no caos inicial, criando um mundo organizado
geograficamente e temporalmente – Disse
também Deus: Haja luzeiros no firmamento dos céus, para fazerem separação entre
o dia e a noite; e sejam eles para sinais, para estações, para dias e anos (v.14).
Tudo que Ele cria é bom e perfeito (pois reflete a Sua face), tem seu lugar
específico e está cheio de vida, povoando e multiplicando sobre a terra, nos
céus e no mar. Ele dá nome a tudo (uma demonstração de seu governo e
autoridade) e separa o bom do mau (a luz das trevas). Além disso, Ele é o Deus
que está sempre agindo no mundo corrompido pelo pecado (Gn 3) nesses termos: a
palavra criar pode ter o sentido de recriar. Criar é sua atitude “natural”
diante do caos: o Espírito de Deus
pairava por sobre as águas (v.2). Assim a criação nunca tem fim; Deus está
trabalhando todos os (6) dias da semana: separando do mundo mau um povo para
ser bom; governando a política internacional; criando e dando coisas boas a
seus filhos; providenciando a chuva, a benção e a fertilidade no tempo
determinado. O ponto alto dessa ação foi em Cristo, o qual morreu e ressuscitou
a fim de levar essa história ao seu cumprimento pleno (os novos céus e terra
dos capítulos finais do Apocalipse), de acordo com o plano eterno da Trindade.
Por isso, as festas do povo têm ligação com o ciclo da
lavoura (como as ofertas dos primeiros frutos), fazendo do ir e vir das
estações não um motivo de alarde, mas de celebração. Por isso, eram um só povo;
tinham uma vida coerente, com um só jeito de viver. Pois buscavam a um só Deus,
que os cria e os separa. O Deus que lhes garante a vida, que lhes traz saúde,
que lhes separa uma terra, que aumenta seu gado e a sua descendência. O Deus
que governa o dia de hoje e o de amanhã e as quatro estações do ano. O Deus que
tem poder sobre a natureza, os homens, a morte e sobre os “deuses” de seus
inimigos. O Deus que tem sua face refletida na luz do sol, nas constelações, no
orvalho, na pétala de uma flor, no trovejar da tempestade, nas ondas do mar, no
choro do recém-nascido e no rugido do leão.
Um Deus assim muda a vida. Não preciso temer os modismos
do mercado, os “ins e outs” da cultura, da política e da economia, ou mesmo o
futuro, pois Deus está constantemente fazendo coisas boas e perfeitas, colocando
ordem no caos ao meu redor. Minha vida e personalidade podem ser uma, pois um
só Deus chefia todos os lugares e acontecimentos. O mundo tem sim seus perigos,
mas também tem em si mesmo “o livro da natureza” que me leva ao nosso Criador
todas as vezes que eu o contemplo com olhos renovados. Dessa maneira, a
pesquisa científica e a arte representativa tornam-se atos de adoração. Posso
ser um com meu próximo, com os países vizinhos, com pessoas de qualquer etnia,
pois temos o mesmo Criador. Não preciso depositar minha segurança em coisas instáveis,
mas no relacionamento com o Deus que tudo governa e tudo provê.
Deste modo, por que os hebreus ou nós precisamos de algum
outro deus? Todas as outras fontes de sobrevivência dependem de uma só. O
Criador. A boa notícia é que Ele é bom e perfeito e está nos separando e
recriando para si. Dependa dEle, sirva a Ele, viva com Ele.