quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

Chamados para o discipulado

É interessante perceber que, à primeira vista, muitos se chamam escolhidos de Deus, servos de Deus, salvos, crentes, cristãos; mas poucos se chamam discípulos de Jesus. Esta série visa a entendermos o nosso chamado (e a nossa salvação) na perspectiva do evangelista Marcos, para o qual não somos salvos para “ir para o céu”, mas para uma vida de discipulado com Jesus.
Depois de João ter sido preso, foi Jesus para a Galileia, pregando o evangelho de Deus, dizendo: O tempo está cumprido, e o reino de Deus está próximo; arrependei-vos e crede no evangelho. (Mc 1.14-15)
Jesus começa a pregar depois de João ter sido preso. Isto marca a substituição da Antiga Aliança (a qual se encerra com João) e o início da Nova (iniciada por Jesus). A segunda não pode iniciar-se antes do término na primeira e Marcos faz questão de pontuar essa mudança.
Uma nova realidade está surgindo com Jesus. Um novo tipo de relacionamento, o qual não é novo por ser essencialmente diferente do antigo, mas porque é a realização plena do antigo: a graça/ o amor de Deus sobre o homem.
Pois Jesus é aquele que faz novas todas as coisas. Novas não no sentido de diferente, mas porque as antigas se deterioraram por causa do pecado. Jesus as refaz para que atinjam o propósito inicial de Deus. Tal ação é denominada de redenção e atinge todas as coisas: a natureza, o homem e todas as interações que esses elementos possuem consigo, uns com os outros e com Deus. O resultado disso é o que Marcos chama de reino de Deus: uma realidade eterna de justiça, alegria, saúde, harmonia, paz, santidade e da presença soberana e graciosa de Deus como fonte, fundamento, centro e objetivo de todas as coisas.
 De fato, isso não é algo inusitado, pois já fazia parte da teologia do Antigo Testamento: o povo de Deus, os sacrifícios rituais, a Lei, a arca e o tabernáculo são exemplos da ação divina para trazer redenção ao mundo, meios que têm por objetivo refazer todas as relações humanas segundo o propósito original de Deus e apontar para Cristo, aquele que realiza todas essas coisas plenamente. Todas as ações de Deus no Antigo Testamento são parciais diante do que Ele realiza por meio de Cristo.
 Por isso, Jesus é aquele que buscamos, adoramos e seguimos. Pois Ele é aquele que redime de forma total todas as coisas; elemento que nenhuma religião, sistema filosófico ou alterações psicológicas, econômicas, sociais, políticas ou militares pode fazer. Ele ultrapassa toda a possibilidade humana de restauração. Ainda que devamos nos utilizar de instrumentos humanamente concebidos para a renovação de todas as coisas, o sucesso dessa empreitada depende da ligação graciosa de toda a criação com Jesus Cristo, o redentor. Assim, resta-nos a pergunta: onde, em que, ou em quem colocamos nossa esperança de redenção e intervenção no mundo?
 Seguindo o texto, vemos também que Jesus não prega para o homem em geral, abstrato, mas para homens concretos. Pois Jesus começa por um local geográfico específico, a Galileia. Local de gente pobre e desprezada, do qual não se espera um agir de Deus: Responderam eles [os fariseus, líderes religiosos judeus]: Dar-se-á o caso de que também tu és da Galileia? Examina e verás que da Galileia não se levanta profeta (Jo 7.52).
Alguns observam que este tipo de escolha refere-se a uma preferência de Jesus pelos pobres, os marginalizados. Veremos que nos trechos seguintes isso parece ser realidade; seja na escolha de pescadores (Mc 1.16ss), de coletores de impostos e pecadores (Mc 2.15-16), seja na escolha de gentios ex-endemoninhados (Mc 5.1-20) para seus discípulos ou anunciadores.
Dessa forma, Jesus inicia por aqueles que estão em clara situação de necessidade de Sua obra redentora. Aqueles que sabem de sua carência; situação muito diferente de muitos que hoje dizem “está tudo bem comigo”.
Isto implica em duas mudanças de atitude. A primeira, por parte do candidato a discípulo, é reconhecer tanto a sua carência de redenção (o que significa: sua pecaminosidade) quanto sua incapacidade de salvar-se ou merecer tal ação divina (mesmo pela fé, que é meio e não condição de salvação). A segunda, por parte da Igreja, é a preferência (não a exclusividade) pelos mais necessitados, pelos que percebem sua carência de redenção (ainda que não saibam o que Deus pode lhes fazer ou como pode) e a perseguem. De fato, Howard Snyder, em seu livro “Vinho novo, odres novos”, destaca que a missão entre os pobres foi sempre mais frutífera, em diferentes épocas e localidades do mundo. Diante disso, o exemplo divino e a amostra estatística não deveriam nos levar a uma reflexão sobre nosso próximo destino missionário? Não baste isso, vê-se que Jesus marca um encontro na Galileia, onde deixa aos discípulos a tarefa de continuar a sua obra (Mc 14.28; Mc 16).
Lá ele prega o evangelho de Deus. Essa expressão, evangelho, traduzida por “boas novas”, era usada pelos romanos para declarar as vitórias de Roma sobre outros povos, a “boa nova” de que a Pax Romana tinha se estendido e que César era o “Senhor” sobre outros “senhores”. A expressão das boas novas da expansão do reino opressivo de Roma é usada por Marcos para designar a chegada e expansão do Reino libertador de Deus.
Isso porque, primeiramente, o tempo está cumprido. O tempo para cumprir-se a expectativa messiânica e as promessas do Antigo Testamento – o tempo da redenção de Deus – chegou. Em outras palavras, o tempo da espera terminou. E o reino de Deus está próximo, ou seja, já chegou.
Pois o Reino de Deus não pode ser separado da presença de Jesus, porque a própria essência do Reino de Deus está justamente na presença divina no meio de Seu povo: Então, ouvi grande voz vinda do trono, dizendo: Eis o tabernáculo de Deus com os homens. Deus habitará com eles. Eles serão povos de Deus, e Deus mesmo estará com eles (Ap 21.3). Assim, onde quer que Jesus pise, lá chegou o Reino de Deus que dissipa o reinado de Satanás (cf. Mc 5.1-20).
É isso que Jesus nos traz e que seus discípulos devem pregar e realizar: o Reino de Deus que dissipa o reinado de Satanás (Mc 3.14-15; 6.7,12-13; 16.15-18). Porém, é isso mesmo que temos realizado e pregado? Um novo Reino? Que a paz deve surgir onde há conflitos, a justiça onde há corrupção, a liberdade onde há escravidão, a fé em Jesus onde há descrença, o amor onde há ódio, a misericórdia onde há indiferença? Que só Jesus pode trazer esse novo Reino? Que todos devem tomar uma posição em relação a isso?
As palavras finais de Jesus, neste trecho, referem-se a esta última questão. Arrependei-vos e crede no evangelho. Trata-se de uma dupla ação: arrepender-se e crer. As duas são indissociáveis e necessárias uma a outra. Como disse Bonhoeffer, no Discipulado: só o crente é obediente, e só o obediente é que crê.
Pois não se pode crer na chegada do Reino e não fazer o necessário para fazer parte dele, pois Se alguém quer vir após mim, a si mesmo se negue, tome a sua cruz e siga-me. Quem quiser, pois, salvar a sua vida perdê-la-á; e quem perder a vida por causa de mim e do evangelho salvá-la-á (Mc 8.34-35). Em outras palavras, agimos segundo cremos. Como o Reino de Deus não possui pecado, devemos perder a nossa antiga maneira pecaminosa de viver para viver segundo a nova realidade da justiça e santidade.
Ainda assim, não se pode obedecer, sem crer, visto que Quem crer e for batizado será salvo; quem, porém, não crer será condenado (Mc 16.16). A fé é o meio pelo qual recebemos a salvação. Porém, para Marcos, a salvação resume-se na vida de discipulado. Somos salvos para sermos discípulos. Isso quer dizer que a fé verdadeira em Jesus, resultará em obediência. Arrepender-se é um passo de fé.
Mas também é um passo que leva à fé. Assim os discípulos seguem a Jesus sem entender quem Ele é, para onde está indo e o que vai fazer (Mc 6.47-52; 8.31-33; 9.5-6, 10 e 30-32). É na vida de discipulado com Jesus que eles o conhecem e creem nEle.
Jesus traz a nós, pecadores necessitados de restauração, o Reino de Deus. Arrependamo-nos e creiamos nesta boa nova de salvação, pois não é possível ouvir este chamado sem posicionar-se, seja para a salvação, seja para a condenação. Assim, tornemo-nos discípulos de Jesus que são alvos, mas também pregadores e realizadores, da obra redentora e libertadora de Deus a todos, especialmente aos mais necessitados.

domingo, 25 de dezembro de 2011

Jesus, o "Deus conosco"


Evangelho de Mateus capítulo 1, versículos18 a 25 (ou Mt 1.18-25):
1.18   Ora, o nascimento de Jesus Cristo foi assim: estando Maria, sua mãe, desposada com José, sem que tivessem antes coabitado, achou-se grávida pelo Espírito Santo.

1.19   Mas José, seu esposo, sendo justo e não a querendo infamar, resolveu deixá-la secretamente.

1.20   Enquanto ponderava nestas coisas, eis que lhe apareceu, em sonho, um anjo do Senhor, dizendo: José, filho de Davi, não temas receber Maria, tua mulher, porque o que nela foi gerado é do Espírito Santo.

1.21   Ela dará à luz um filho e lhe porás o nome de Jesus, porque ele salvará o seu povo dos pecados deles.

1.22   Ora, tudo isto aconteceu para que se cumprisse o que fora dito pelo Senhor por intermédio do profeta:

1.23   Eis que a virgem conceberá e dará à luz um filho, e ele será chamado pelo nome de Emanuel (que quer dizer: Deus conosco).

1.24   Despertado José do sono, fez como lhe ordenara o anjo do Senhor e recebeu sua mulher.

1.25   Contudo, não a conheceu, enquanto ela não deu à luz um filho, a quem pôs o nome de Jesus.

            No começo das Confissões de Agostinho, ele diz a Deus: “Criastes-nos para Vós e o nosso coração vive inquieto, enquanto não repousa em Vós”. Com esta frase, Agostinho resumiu a sua vida. A vida de um homem devasso, que buscou em vários caminhos, filosofias e religiões de sua época o conforto para a sua alma angustiada, mas não encontrou. Um homem que viveu inquieto até encontrar descanso nos braços de Jesus Cristo. Por que é somente em Jesus Cristo que o homem pode encontrar o perdão dos seus pecados e, mais do que isto, somente em Jesus nós temos acesso a Deus, que, segundo Agostinho, é o que falta para nossa vida. Não as suas bênçãos, prosperidade ou realização pessoal, mas o próprio Deus, que nós afastamos diariamente com nossos pecados.
            Porque há muitos caminhos que nos são oferecidos; mas, como aconteceu com José, nenhum deles cumpre a vontade de Deus de nos trazer descanso, perdão dos pecados e união com Deus.
            Maria e José eram noivos, estavam prometidos em casamento. E José era um homem justo, porque obedecia fielmente toda Lei que Deus havia dado ao seu povo por meio de Moisés. Por isso, quando descobre que Maria estava grávida, este homem sabe que o filho não era seu, pois havia cumprido o mandamento de Deus que o proibia de ter relações sexuais antes do casamento.
            Imagine como José deve ter se sentido. Traído, enganado, ofendido. A inconveniência de ter de garantir que não havia tocado em Maria. O olhar embaraçado de Maria em ter de explicar algo que ninguém acreditaria. Afinal, desde quando uma virgem engravida? Ainda mais de Deus! Mas José era um homem bom, ele não queria difamar Maria, nem queria levá-la a julgamento público, seguido do apedrejamento de Maria e da criança que ela carregava. Mas sendo justo, também não queria ligar-se a uma situação que lhe parecia errada; afinal de contas, como tomar um filho que não era dele? José estava num impasse. Impasse esse que ele tentaria resolver deixando Maria em segredo.
            Mas essa não era a vontade de Deus. Quando o anjo aparece a José, no v.20, ele chama José de filho de Davi. Ora, Davi havia sido um rei poderoso da nação de Israel a quem Deus havia prometido que sempre teria um descendente no trono dessa nação, como diz em 2 Sm 7.16, Ou seja, haveria sempre um descendente de Davi reinando sobre Israel. Mas na época de José, o povo judeu não tinha rei e esperava que Deus enviasse um rei, descendente do grande rei Davi, que traria uma nova época de paz e prosperidade acompanhada de santidade e da presença de Deus no meio do seu povo e isso para todo o sempre. Uma nova realidade que Mateus chama em seu evangelho de o Reino dos céus.
            Só que Maria não era descendente de Davi. Para que esta profecia se cumprisse em Jesus, era necessário que José, filho (ou descendente) de Davi, assumisse Jesus como seu filho. Mas se José deixasse Maria, como isso poderia acontecer?
            Assim, embora José estivesse fazendo o que ele achava ser o certo de acordo com o que havia aprendido no judaísmo da sua época, ele não estava cumprindo a vontade de Deus de fazer de Jesus o filho de Davi, aquele que deveria trazer o Reino dos céus. Dessa forma, o povo não teria o perdão dos pecados e viveria longe de Deus em vida e seria condenado ao inferno após a morte.
            Isso porque, muito mais do que obedecer a uma lei, ou tentar dar as respostas certas aos problemas da vida – muito mais que ser um bom religioso – o que Deus quer de nós é que façamos a sua vontade; vontade essa que só pode nos ser revelada e que nenhuma religião, ou conjunto de regras e valores que você imagine na sua cabeça, pode lhe revelar.  
            E vemos isso claramente em nossas vidas, pois os nossos próprios caminhos ou mesmo as religiões que encontramos hoje não nos levam a ter a vontade de Deus cumprida em nossas vidas, nos deixando sem descanso, perdão dos pecados e sem Deus.
            Por muito tempo foi assim a vida de um homem chamado Toyohiko Kagawa. Como todo japonês, ele entrou em contato com várias religiões orientais como o budismo, o confucionismo e o xintoísmo. Em um dos seus livros, ele afirma que todas essas tradições religiosas o ajudaram a ser um homem melhor; mas elas não tinham atendido às necessidades mais profundas do seu coração. Ele continuava a viver cansado, em meio a tragédias e lágrimas. Até que um dia, ele conheceu a Jesus Cristo e teve o seu coração aliviado, os seus pecados perdoados e a presença de Deus em sua vida por causa de Jesus. Em um de seus livros, Kagawa refere-se ao amor e à salvação de Jesus Cristo, com as seguintes palavras: “Para mim, que nasci filho do pecado, esse amor redentor enche e faz vibrar cada fibra de meu ser. Ele produz em mim um senso profundo de gratidão”. Gratidão essa que o fazia buscar a cada dia viver como Jesus viveu e amar as pessoas como Jesus amou. E como Kagawa conseguiu isso? Através de muita oração e na prática dos ensinos de Jesus no sermão do monte (em Mt 5-7). Pois no sermão do monte, Jesus nos ensina como vivermos de acordo com a vontade de Deus.
            Mas ao contrário de Kagawa, muitos ainda insistem em encontrar descanso e alívio para si longe de Deus; esperam encontrar o perdão dos pecados e a salvação em seu próprio esforço e esforçam-se para encontrar Deus fora de Jesus Cristo. E falham. Embora por algum tempo suas vidas pareçam ir bem, eles pareçam felizes e satisfeitos, andando por um caminho justo e bom; um dia, como disse Jesus no final do sermão do monte, a casa cai. Por que fora de Jesus não há salvação, não há descanso ou alívio, não há encontro com Deus. E chegamos ao ponto em que Kagawa chegou: cansaço, tragédia e lágrimas. De fato, o Japão, mesmo com toda a sua espiritualidade e sabedoria, ainda é o país com a maior taxa de suicídio do mundo. Há, até mesmo, um manual de suicídio que pode ser comprado por qualquer pessoa em qualquer livraria do Japão.
            As religiões e a espiritualidade dos homens não trazem o que precisamos. Pois, assim como a religião de José não o levava ao cumprimento da vontade de Deus para ter descanso, perdão dos pecados e união com Deus, também nenhuma religião do mundo traz isso ao homem. Mas aqueles que como Agostinho e Kagawa encontram a Cristo, esses encontram essas coisas.
            Pois quando José tinha decidido deixar Maria e, assim, desobedecer a vontade de Deus, o próprio Deus envia um anjo a José no seu sonho para lhe dizer, conforme os v. 20 e 21: “José, filho de Davi, não temas receber Maria, tua mulher, porque  o que nela foi gerado é do Espírito Santo. Ela dará a luz um filho e lhe porás o nome de Jesus, porque ele salvará o seu povo dos pecados deles”. E José, crendo na mensagem do anjo, obedece, casa-se com Maria e Jesus é feito filho de Davi, como diz o primeiro versículo do evangelho de Mateus, que diz: “Livro da genealogia de Jesus Cristo, filho de Davi, filho de Abraão”.
            Dessa forma, Jesus torna-se o cumprimento da vontade de Deus revelada nos profetas do antigo testamento, de trazer salvação e reconciliação do povo de Israel com Deus.
            Aliás, os dois nomes de Jesus já trazem essa verdade. Pois Jesus é a tradução grega da palavra hebraica Yeshua, que significa salvação, e segundo o v. 21, a salvação é o perdão dos pecados para quem crê em Jesus como seu salvador, porque somente Jesus morreu numa cruz para trazer perdão dos pecados para aqueles que creem nEle e o recebem em suas vidas. Ele também é chamado por Mateus de Emanuel, como está no v. 23, que quer dizer “Deus conosco”, como cumprimento de uma profecia de Isaías que se encontra em Is 7.14 e que se cumpre totalmente em Jesus, porque Ele é o próprio Deus que se fez homem e habitou entre homens como eu e você.
            Assim, vemos no evangelho de Mateus que Deus quer perdoar os pecados de seu povo e Jesus é aquele que cumpre essa vontade de Deus; por isso em Mt 9.2, antes de curar o paralítico que foi trazido numa maca por seus quatro amigos, Jesus lhe diz: Tende bom ânimo, filho; estão perdoados os teus pecados. Deus queria trazer alívio e repouso ao seu povo e Jesus é aquele que cumpre essa vontade de Deus, por isso ele diz ao povo, em Mt 11.28-30: Vinde a mim, todos os que estão cansados e sobrecarregados, e eu vos aliviarei. Tomai sobre vós o meu jugo e aprendei de mim, porque sou manso e humilde de coração; e achareis descanso para a vossa alma. Porque o meu jugo é suave e o meu fardo é leve. Deus quer reunir um povo ao seu redor para habitar com Ele e Jesus é aquele que cumpre essa vontade de Deus, pois Ele diz, em Mt 18.20: Porque, onde estiverem dois ou três reunidos em meu nome, ali estou no meio deles.
            Jesus conquistou tudo isso, quando morreu por nós na cruz e ressuscitou dos mortos e dessa forma tornou-se aquele que cumpre a vontade de Deus de trazer descanso para a alma cansada, perdão dos pecados e a presença de Deus aos homens que creem nele e o recebem.
            Pois Deus nos chama a simplesmente receber essas coisas por meio de Jesus Cristo. Não há exigências, condições ou uma oferta especial para se comprar a salvação. Porque a fé cristã não se baseia em segredos ou regras, mas em Jesus Cristo. Essa foi a resposta de um pregador indiano chamado Sudar Singh quando foi questionado sobre o que havia de diferente na fé cristã em relação a todo tipo de religião.
            Até seus 15 anos de idade, Sudar Singh tinha um ódio mortal contra a fé cristã, chegando até mesmo a queimar um evangelho em público. Mas três dias depois ele se converteu por meio de uma visão de Cristo e desde então resolveu viver como um pregador peregrino, indo aonde quer que Deus o enviasse e pregando Jesus Cristo a quem ele encontrasse. Um dia, ele entrou numa faculdade e começou a anunciar Jesus; nisso um professor irado lhe perguntou: “o que você encontrou no cristianismo que você não tinha encontrado na nossa religião?”. A resposta dele foi simplesmente: “eu tenho Jesus Cristo”. O professor, já impaciente, insistiu: “Sim, eu sei, mas que princípio ou doutrina específica o senhor encontrou no cristianismo que não havia encontrado na nossa religião?” Sudar Singh respondeu: “O que eu encontrei de específico é Jesus Cristo”.
            A resposta de Deus para as nossas angústias, para o nosso pecado, para a nossa separação de Deus, não é uma doutrina, não é uma série de regras ou listas de boas obras que você deve cumprir; a resposta de Deus é Jesus Cristo.
            Alguns, hoje, acham uma afirmação dessas muito arrogante. Outros dizem que isto está ultrapassado. Mas o próprio Jesus diz, em Mt 28.18-20:
28.18   Jesus, aproximando-se, falou-lhes, dizendo: Toda a autoridade me foi dada no céu e na terra.

28.19   Ide, portanto, fazei discípulos de todas as nações, batizando-os em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo;

28.20   ensinando-os a guardar todas as coisas que vos tenho ordenado. E eis que estou convosco todos os dias até à consumação do século.
            Não é apenas José, Agostinho, Kagawa e Sudar Singh que são convocados por Deus para crerem em Jesus e o receberem como seu salvador e Senhor, mas todos os homens, em todas as nações e épocas; porque Jesus, ao ser Filho de Davi, tornou-se muito mais que o Rei de Israel, Ele tornou-se o Rei de todos os homens, como diz no v. 18: Toda a autoridade me foi dada no céu e na terra. E por isso todos devem tornar-se discípulos de Jesus. E como discípulos devem ser batizados em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, pois é através do batismo que o perdão dos pecados, anunciado pelo anjo a José, conquistados por Jesus na cruz e recebido pela fé é selado na vida do discípulo de Jesus.
            E todos os discípulos de Jesus devem ser como José, que obedeceu à vontade de Deus expressa pelo anjo. De modo que os discípulos de Jesus, segundo o v. 20, devem ser ensinados a guardar todas as coisas que Jesus tinha ordenado. Pois tudo o que Jesus nos ordenou, especialmente no sermão do monte em Mt 5-7 (o qual Kagawa praticava diariamente para viver como Jesus), é o jugo de Jesus que traz alívio e descanso aos que estão cansados e sobrecarregados, como já foi lido, em Mt 11.28-30.
            Finalmente, Jesus promete ser o Emanuel, o Deus conosco, para todos os seus discípulos até o fim de todas as coisas, quando prometeu, no final do v. 20: e eis que estou convosco todos os dias até à consumação do século.
            Concluindo, relembro as palavras de Agostinho, em oração a Deus: “Criastes-nos para Vós e o nosso coração vive inquieto, enquanto não repousa em Vós”. Ele disse isso porque sabia que todos nós precisamos de descanso para a alma, perdão para os nossos pecados e da presença de Deus em nossas vidas. Mas não sigamos os erros de José, Agostinho, Kagawa e Sudar Singh. Sigamos o seu acerto. Recebamos a Jesus, aquele que cumpre a vontade amorosa de Deus em nossas vidas. Sejamos seus discípulos, recebendo o selo do perdão dos pecados de Jesus, no batismo do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Sejamos obedientes como José à vontade revelada de Deus, ao guardarmos o sermão do monte, como Kagawa fez. E vivamos com Deus, em Jesus Cristo, todos os dias até o fim de todas as coisas, porque Ele é o “Deus conosco”. E com tudo isso, certamente encontraremos o descanso que Agostinho, Kagawa e Sudar Singh encontraram em Jesus e em nenhum outro lugar.

quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

Vozes no deserto 3


Encerrando esta série sobre o deserto, voltamo-nos para um momento complicado (e rechaçado) de nossas existências: o tempo de aparente aridez espiritual. O objetivo desta publicação não é ensinar como contornar o deserto, mas auxiliar na tentativa de atravessá-lo, reconhecendo-o não como punição ou abandono de Deus, mas como uma demonstração de sua infinita e constante graça.

Logo após, o Espírito o impeliu para o deserto. Ali esteve quarenta dias, sendo tentado por Satanás. Estava com os animais selvagens, e os anjos o serviam. (Mc 1.12-13).
A expressão logo após nos remete ao texto anterior, no qual Jesus é declarado como o Filho amado de Deus Pai, em quem esse se agrada. Assim, vemos o próprio filho amado de Deus sendo lançado “na fogueira”, por assim dizer. Isso é ofensivo à nossa mentalidade atual, tão bombardeada com uma série de promessas de vitória e prosperidade para os chamados filhos de Deus, que têm um mandato (divino?) de ser “cabeça e não cauda”.
Essa mentalidade não nos prepara para situações com esta: de escassez, de tentação e de hostilidade, de desemprego, de oposição e de lutas intensas contra nossa pecaminosidade e esforços aparentemente inúteis de buscar a Deus. Quando isso acontece, dizem ser uma punição divina, maldição ou falta de fé.
Porém no caso de Jesus, vemos que foi o próprio Espírito quem o impeliu para o deserto. De modo mais claro, Deus o enviou para o deserto; este lugar de demônios (onde foi tentado por Satanás) e animais perigosos, como serpentes e escorpiões. Mas, por que Deus faria isso com um de seus filhos amados?
Stephen Eyre nos alerta para um tempo de deserto, muitas vezes posterior a um momento de profundo crescimento, no qual Deus, embora pareça ausente, está bem próximo, mas agindo de modo tão profundo que não percebemos.
Isso pode parecer estranho à primeira vista, mas se lembrarmos de como muitas vezes estranhamos o nosso próprio comportamento e de que Deus geralmente frustra nossas expectativas de ações espetaculares, veremos que faz todo o sentido. Então nos lembraremos de Elias, o qual fugindo de Jezabel para o deserto, viu Deus passar não no vento fortíssimo que separou montes e esmigalhou rochas, nem no terremoto ou no fogo, mas no murmúrio sutil de uma brisa suave que fez Elias cobrir o rosto em reverência (1 Rs 19.1-13).

Nos momentos de deserto, tudo o que fazemos parece vazio, sem sentido, sem resultados. Simplesmente errado, como se as regras do jogo (o que sabemos sobre espiritualidade, leitura da Palavra e oração) tivessem mudado. Inicialmente, podemos sentir algum desânimo à medida que a leitura parece não agitar mais nosso ser e a oração parece em vão.


Mas isso é substituído por uma busca mais intensa, como Davi no Sl 63.1: Ó Deus, tu és o meu Deus, eu te busco intensamente; a minha alma tem sede de ti! Todo o meu ser anseia por ti, numa terra, seca exausta e sem água.
Para Eyre, apesar de tudo isso, pode ser que estejamos nos aproximando muito mais de Deus do que antes, a fim de sermos moldados no mais íntimo de nosso ser. Então percebemos que ao nos livrar daquilo que satisfazia nossos anseios carnais ou a nossa espiritualidade superficial, Deus quer que O reconheçamos como o único que pode nos satisfazer, e assim digamos: Tu és o meu Senhor; não tenho nenhum bem além de ti (Sl 16.2); e A minha alma descansa somente em Deus; dele vem a minha salvação (Sl 62.1).
Seguindo a mesma direção Kierkegaard nos lembra que o bom médico não é aquele que interrompe a cirurgia de emergência porque seu paciente está com dor, mas sim aquele que não o poupa, pois sabe que precisa curá-lo o quanto antes. Deus quer nos moldar à imagem de Cristo e nos aproximar dEle mesmo. Ele não nos poupará do que é imprescindível.
Mas mesmo no deserto hostil, vemos a presença generosa de Deus. Pois, os anjos o serviam. Porque Deus cuida dos seus no deserto, como diz Os 13.5: Eu cuidei de vocês no deserto. De modo muito interessante e conveniente para esta meditação, a palavra que é traduzida por “cuidei” na NVI é traduzida por “conheci” na ARA. Isso ocorre porque a palavra em questão significa conhecer, mas pode ser usada para falar de um relacionamento sexual íntimo, ou mesmo amor/ cuidado. Nisso percebemos o amor de Deus no deserto, tanto nos levando a águas mais profundas do nosso relacionamento com Ele, quanto percebendo seu cuidado, servindo-nos muitas vezes de refúgio e satisfação quando nada mais serve. Assim, vez após vez, voltamo-nos a Deus com o coração aflito e angustiado, vindos de uma vida cansativa e aparentemente sem sentido, até que, inesperadamente,  somos aliviados – vez após vez – não por bênçãos, mas pela presença de Deus.
Dessa forma, fazemos de Deus a fonte da nossa vida e aprendemos a peregrinar pelo deserto de fonte em fonte, de encontros em encontros com Deus. E nisso somos felizes, como diz o salmista: Como são felizes os que em ti encontram sua força, e os que são peregrinos de coração! Ao passarem pelo vale seco, fazem dele um lugar de fontes; as chuvas de outono também o enchem de cisternas. (Sl 84.5 e 6).
Por tudo isso, o deserto não deve ser evitado, mas atravessado. Deste modo, chegaremos ao seu fim conhecendo mais intimamente a Deus, confiando mais em seu amor e como novas pessoas, que têm suas vidas fortalecidas e renovadas diariamente, não por novas bênçãos, mas pela mesma presença maravilhosa deste bom Deus.

quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

Vozes no deserto 2


     Como dito na semana passada, a situação de deserto pode nos levar a mantermos como referência de nossa espiritualidade a superficialidade. Isso reflete em nossas vidas diárias no que costumamos chamar de mediocridade.
     Mediocridade não é sinônimo de inferioridade, mas significa que vivemos igual à média da população. Isso não seria um problema, caso todos vivessem em altos níveis morais, existenciais e espirituais. Mas será que vivemos? Não é a nossa vida marcada, muitas vezes, pelo tédio (ou pela freqüente distração dele); pela ansiedade; insônia; tristeza e enfado? Quantas noites dormimos com um sorriso cansado no rosto, pensando “esse dia valeu pena!”?
     Mas será que isso é vida cristã? Uma vida de relacionamento moldada pelo Pai, Filho e o Espírito Santo, que deveria transformar radicalmente a nossa existência?
     Neste próximo trecho de Marcos, vemos que o batismo de Jesus torna-se um paradigma para nossa própria mudança de vida no contexto do relacionamento da Trindade, tirando-nos da mediocridade e levando-nos a vôos mais altos.
     Naquela ocasião Jesus veio de Nazaré da Galileia e foi batizado por João no Jordão. Assim que saiu da água, Jesus viu o céu se abrindo, e o Espírito descendo como pomba sobre ele. Então veio dos céus uma voz: “Tu és o meu Filho amado, em ti me agrado” (Evangelho de Marcos, capítulo 1, versículos 9 a 11).
      Enquanto João batiza a multidão para o arrependimento, surge Jesus. Vindo de Nazaré da Galileia, uma região pobre e desprezada (como nos mostra a reação de Natanael no evangelho de João 1.46), surge um homem de cerca de trinta anos, para ser batizado também.
     Porém, assim que sai da água, algo diferente acontece com este Jesus de Nazaré. A primeira coisa é que ele vê é o céu se abrindo. A palavra traduzida aqui por “abrindo” é a mesma usada em Mc 15.38, para descrever que o véu do templo estava se rasgando. Por isso, e pelo fato de que tanto o céu quanto o santuário do Senhor (o antigo “Santo dos Santos”) são os lugares onde Deus habita (na mentalidade da época), muitos entendem que este acontecimento refere-se a um encontro entre o que é transcendente (o céu) e o que é terreno; como se o Reino de Deus invadisse o mundo dos homens de modo especial no batismo de Jesus.
     Assim o batismo se torna o paradigma daquilo que Kierkegaard chamou de “instante”, que é o momento em que o transcendente toca o mundano na vida do homem comum. Para este filosofo todo ser humano deve realizar em sua existência o encontro entre o temporal e o eterno, o finito e o infinito, a necessidade e a possibilidade; coisa que, para ele, somente Jesus realizou. Dessa forma, o batismo guarda um significado espiritual muito maior do que um ritual ou um sinal, mas ele aponta para uma realidade espiritual na vida do cristão: a de que sua vida terrena e cotidiana é o lugar em que Deus realiza esse encontro entre céu e terra.
     Por isso a vida do cristão não é insignificante. Ela é diariamente um empreendimento divino de trazer a este mundo o Seu Reino de amor, alegria, paz e justiça. O cristão não é meramente chamado a ser um transformador da realidade que o cerca; ele é inerentemente essa transformação viva e ambulante. Ou seja, o cristão não faz missão como uma escolha, ele é a missão em si. Onde quer que Jesus e os discípulos fossem o Reino de Deus destronava o reino de Satanás (Mc 5.1-20 e Lc 10.17-19); assim deve ser hoje, na vida daqueles que são discípulos de Jesus. Se tal transformação não ocorre, o dito cristão deveria questionar-se sobre seu discipulado com Jesus, o Pai e o Espírito.
     A segunda coisa que acontece é que o Espírito desce como uma pomba sobre Jesus. Não apenas o Reino de Deus, mas o próprio Deus na pessoa do Espírito está com Jesus. É o Espírito que o unge para a missão (Lc 4.18-19), é no seu poder que Jesus age, é o Espírito que o move (Mc 1.12).
     Da mesma forma é o Espírito conosco: Ele está sempre nos moldando, nos levando aos perdidos (no pecado, na miséria social, na mediocridade do mundo “sem Deus”), nos enchendo com o amor de Deus pelo nosso próximo, guiando nossos passos, capacitando-nos para o trabalho, fortalecendo-nos em nossas dificuldades e nos ajudando a levar a cruz. Sem o Espírito não podemos ser como Jesus. Por isso Paulo nos instrui: deixem-se encher pelo Espírito (Ef. 5.18). Isso nos leva a um outro aspecto: é o Espírito que vem sobre nós; não O recebemos por esforço próprio. É o Espírito quem nos move à devoção, pois anseia nos preencher plenamente. É Deus quem quer fazer parte de nossa vida e nos convida a fazer parte da dEle. Temos correspondido a esse desejo divino?
     A última coisa é a própria voz de Deus, o Pai, alegando que Jesus é o Filho amado, em quem Ele se agrada. Assim, o Pai confirma Jesus como o Filho de Deus, o próprio Deus. E não apenas isso, mas aquele em quem o Pai se agrada – por quem Jesus é e por aquilo que fará na cruz em nosso favor (Por isso o Pai me ama, porque dou a minha vida para retomá-la – Jo 10.17).
    Semelhantemente, somos feitos filhos de Deus, pois essa é a relação que Deus quer ter conosco. Quando os discípulos retornam de uma grande campanha a favor do Reino de Deus, Jesus não os parabeniza, mas ajusta suas perspectivas com as do Pai: Contudo alegrem-se, não porque os espíritos submetem-se a vocês, mas porque seus nomes estão escritos nos céus (Lc 10.20). E não apenas isso, mas Deus quer nos tornar em filhos dignos do seu agrado, ou seja, pessoas com o caráter de Jesus, com sua disposição para negarem a si mesmos, tomarem a cruz e seguirem (imitarem) Jesus. E porque tudo o que Jesus conquistou na cruz e todo o empreendimento do Espírito de Deus tem esse fim – o de nos tornarmos filhos amados de Deus, nos quais Ele se agrada – esse também deve ser o foco de toda a nossa lida.
    Por tudo isso, Deus nos chama a deixarmos a mediocridade de uma vida sem Deus e sermos transformados pela presença do Pai, do Filho e do Espírito Santo em nós; vivendo uma nova existência, na qual o Reino de Deus acontece em nós e transforma a realidade que nos cerca através de nós; a qual compartilhamos com a Trindade e que nos torna a cada dia filhos amados que agradam a Deus pelo seu andar a vida.

quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

Vozes no Deserto

     Tenho conversado com muitas pessoas, de diferentes igrejas e denominações cristãs sérias.Os relatos são semelhantes: encontros para oração e leitura comunitária da Palavra com pouquíssimos jovens (em contraposição aos eventos e "intercâmbios" cheios) e uma visível superficialidade espiritual - evidenciada em falta de conhecimento bíblico e ética cristã contestável, com o sério agravante no qual essas pessoas atestam (também para si mesmas?) que vivem para a glória de Deus em todas as coisas.
     Como explicar isso? Parece-me que vivemos sob duas referências. A primeira é a de que nossos sonhos, anseios e desejos trazem sentido à nossa vida (tanto no aspecto existencial quanto na orientação de nossos esforços e planos) e que, portanto, devem ser buscados sem interrupção e do jeito que for possível (o que muitas vezes significa torcer a vontade de Deus e Sua palavra para que tudo se encaixe). A segunda é que o discipulado cristão que vivemos hoje, seja quão superficial for, é tudo que Deus tem para nós. Ou seja, nossas referências são reajustadas para validar o estilo de vida que queremos viver.
     Numa situação como esta, o evangelho de Marcos pode nos trazer ao rumo certo: o de tornar a cruz a nossa referência de vida cristã.
    Ele começa com o ministério de João Batista, como aquele que prepara o caminho para que Jesus venha. Ele é um enviado de Deus para comunicar aquilo que Deus quer dizer. Ele é uma voz. Ou como se dizia a muito tempo: ele é a boca de Deus. Pois é Deus quem clama no deserto através do profeta. E clama NO DESERTO. Um lugar hostil e sem vida; lugar de dificuldades.
     Ao longo da espiritualidade cristã, o deserto tornou-se metáfora de dificuldades espirituais. Quando a busca por Deus torna-se aparentemente infrutífera, quando nossas experiências são tão internas que não as alcançamos. Para os nossos antepassados cristãos esse momento de crise era o caminho para uma espiritualidade mais profunda. Porém, hoje, o deserto de muitos tornou-se o ponto ideal; não mais de um  caminho para a maturidade, mas para a superficialidade. Afinal de contas, "as coisas são assim mesmo". Vivemos num deserto não da mudança, mas da estagnação, da escassez de profundidade espiritual, quando jovens vivem desenfreadamente para suas carreiras, futuros, previdências, sonhos, prazeres (sexuais ou não) e tudo para a glória de Deus! E com isso Cristo está apagado em nossas vidas pessoais e comunitárias. Talvez isso explique a falta de crescimento sustentável em nossas igrejas.
     O que Deus está clamando neste deserto? "Preparai o caminho do Senhor, endireitai as suas veredas" (Mc 1.3). Era um batismo de arrependimento. Já é hora de trocarmos o batismo da vitória pessoal pelo batismo do arrependimento. Precisamos endireitar a nossa vida, vivendo como reais discípulos de Jesus Cristo. O discípulo é aquele que imita a vida de quem segue. Nossas vidas pessoais e comunitárias são as vidas que Jesus viveria? Elas são vidas de cruz?
     Essa é a condição para uma outra postura necessária hoje: cada cristão deve ser a voz de Deus ao seu próximo (cristão ou não cristão). Isso exigirá a pouca preocupação com uma vida de conforto, a semelhança de João Batista, cujas vestes "eram feitas de pêlos de camelo; ele trazia um cinto de couro e se alimentava de gafanhotos e mel silvestre" (Mc 1.6). Pois este não é um movimento de crentes mimados. Mas de servos abnegados.
     O que devemos ansiar neste processo? Que as pessoas ajam como no v.5 deste trecho e unam-se às vozes de Deus no deserto e, juntas, confessem sua superficialidade e vida pouco exigente (pecaminosa) e busquem um batismo de arrependimento. Assim Cristo terá um caminho para parecer mais real e presente em nossas vidas pessoais e comunitárias.
     Venhamos e mudemos. Endireitemos nossas vidas, saindo do lamaçal da superficialidade e busquemos as profundezas daquilo que Deus tem para nós em si mesmo, na Sua cruz e ressurreição. E sejamos a voz
(ou a boca) de Deus em nossos dias. E tudo isso para a glória de Deus!