Encerrando
esta série sobre o deserto, voltamo-nos para um momento complicado (e
rechaçado) de nossas existências: o tempo de aparente aridez espiritual. O
objetivo desta publicação não é ensinar como contornar o deserto, mas auxiliar
na tentativa de atravessá-lo, reconhecendo-o não como punição ou abandono de
Deus, mas como uma demonstração de sua infinita e constante graça.
Logo após, o Espírito o impeliu para o
deserto. Ali esteve quarenta dias, sendo tentado por Satanás. Estava com os
animais selvagens, e os anjos o serviam. (Mc 1.12-13).
A expressão logo após nos remete ao texto anterior,
no qual Jesus é declarado como o Filho amado de Deus Pai, em quem esse se
agrada. Assim, vemos o próprio filho amado de Deus sendo lançado “na fogueira”,
por assim dizer. Isso é ofensivo à nossa mentalidade atual, tão bombardeada com
uma série de promessas de vitória e prosperidade para os chamados filhos de
Deus, que têm um mandato (divino?) de ser “cabeça e não cauda”.
Essa
mentalidade não nos prepara para situações com esta: de escassez, de tentação e
de hostilidade, de desemprego, de oposição e de lutas intensas contra nossa
pecaminosidade e esforços aparentemente inúteis de buscar a Deus. Quando isso
acontece, dizem ser uma punição divina, maldição ou falta de fé.
Porém no caso
de Jesus, vemos que foi o próprio Espírito quem o impeliu para o deserto. De
modo mais claro, Deus o enviou para o deserto; este lugar de demônios (onde foi
tentado por Satanás) e animais perigosos, como serpentes e escorpiões. Mas, por
que Deus faria isso com um de seus filhos amados?
Stephen Eyre
nos alerta para um tempo de deserto, muitas vezes posterior a um momento de
profundo crescimento, no qual Deus, embora pareça ausente, está bem próximo,
mas agindo de modo tão profundo que não percebemos.
Isso pode
parecer estranho à primeira vista, mas se lembrarmos de como muitas vezes
estranhamos o nosso próprio comportamento e de que Deus geralmente frustra
nossas expectativas de ações espetaculares, veremos que faz todo o sentido. Então
nos lembraremos de Elias, o qual fugindo de Jezabel para o deserto, viu Deus
passar não no vento fortíssimo que separou montes e esmigalhou rochas, nem no
terremoto ou no fogo, mas no murmúrio sutil de uma brisa suave que fez Elias
cobrir o rosto em reverência (1 Rs 19.1-13).
Nos momentos
de deserto, tudo o que fazemos parece vazio, sem sentido, sem resultados.
Simplesmente errado, como se as regras do jogo (o que sabemos sobre
espiritualidade, leitura da Palavra e oração) tivessem mudado. Inicialmente,
podemos sentir algum desânimo à medida que a leitura parece não agitar mais
nosso ser e a oração parece em vão.
Mas isso é substituído por uma busca mais
intensa, como Davi no Sl 63.1: Ó Deus, tu
és o meu Deus, eu te busco intensamente; a minha alma tem sede de ti! Todo o
meu ser anseia por ti, numa terra, seca exausta e sem água.
Para Eyre,
apesar de tudo isso, pode ser que estejamos nos aproximando muito mais de Deus
do que antes, a fim de sermos moldados no mais íntimo de nosso ser. Então
percebemos que ao nos livrar daquilo que satisfazia nossos anseios carnais ou a
nossa espiritualidade superficial, Deus quer que O reconheçamos como o único
que pode nos satisfazer, e assim digamos: Tu
és o meu Senhor; não tenho nenhum bem além de ti (Sl 16.2); e A minha alma descansa somente em Deus; dele
vem a minha salvação (Sl 62.1).
Seguindo a
mesma direção Kierkegaard nos lembra que o bom médico não é aquele que
interrompe a cirurgia de emergência porque seu paciente está com dor, mas sim
aquele que não o poupa, pois sabe que precisa curá-lo o quanto antes. Deus quer
nos moldar à imagem de Cristo e nos aproximar dEle mesmo. Ele não nos poupará
do que é imprescindível.
Mas mesmo no
deserto hostil, vemos a presença generosa de Deus. Pois, os anjos o serviam. Porque Deus cuida dos seus no deserto, como
diz Os 13.5: Eu cuidei de vocês no
deserto. De modo muito interessante e conveniente para esta meditação, a
palavra que é traduzida por “cuidei” na NVI é traduzida por “conheci” na ARA.
Isso ocorre porque a palavra em questão significa conhecer, mas pode ser usada
para falar de um relacionamento sexual íntimo, ou mesmo amor/ cuidado. Nisso
percebemos o amor de Deus no deserto, tanto nos levando a águas mais profundas
do nosso relacionamento com Ele, quanto percebendo seu cuidado, servindo-nos
muitas vezes de refúgio e satisfação quando nada mais serve. Assim, vez após
vez, voltamo-nos a Deus com o coração aflito e angustiado, vindos de uma vida
cansativa e aparentemente sem sentido, até que, inesperadamente, somos aliviados – vez após vez – não por
bênçãos, mas pela presença de Deus.
Dessa forma,
fazemos de Deus a fonte da nossa vida e aprendemos a peregrinar pelo deserto de
fonte em fonte, de encontros em encontros com Deus. E nisso somos felizes, como
diz o salmista: Como são felizes os que
em ti encontram sua força, e os que são peregrinos de coração! Ao passarem pelo
vale seco, fazem dele um lugar de fontes; as chuvas de outono também o enchem
de cisternas. (Sl 84.5 e 6).
Por tudo isso,
o deserto não deve ser evitado, mas atravessado. Deste modo, chegaremos ao seu
fim conhecendo mais intimamente a Deus, confiando mais em seu amor e como novas
pessoas, que têm suas vidas fortalecidas e renovadas diariamente, não por novas
bênçãos, mas pela mesma presença maravilhosa deste bom Deus.
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