quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

Vozes no deserto 3


Encerrando esta série sobre o deserto, voltamo-nos para um momento complicado (e rechaçado) de nossas existências: o tempo de aparente aridez espiritual. O objetivo desta publicação não é ensinar como contornar o deserto, mas auxiliar na tentativa de atravessá-lo, reconhecendo-o não como punição ou abandono de Deus, mas como uma demonstração de sua infinita e constante graça.

Logo após, o Espírito o impeliu para o deserto. Ali esteve quarenta dias, sendo tentado por Satanás. Estava com os animais selvagens, e os anjos o serviam. (Mc 1.12-13).
A expressão logo após nos remete ao texto anterior, no qual Jesus é declarado como o Filho amado de Deus Pai, em quem esse se agrada. Assim, vemos o próprio filho amado de Deus sendo lançado “na fogueira”, por assim dizer. Isso é ofensivo à nossa mentalidade atual, tão bombardeada com uma série de promessas de vitória e prosperidade para os chamados filhos de Deus, que têm um mandato (divino?) de ser “cabeça e não cauda”.
Essa mentalidade não nos prepara para situações com esta: de escassez, de tentação e de hostilidade, de desemprego, de oposição e de lutas intensas contra nossa pecaminosidade e esforços aparentemente inúteis de buscar a Deus. Quando isso acontece, dizem ser uma punição divina, maldição ou falta de fé.
Porém no caso de Jesus, vemos que foi o próprio Espírito quem o impeliu para o deserto. De modo mais claro, Deus o enviou para o deserto; este lugar de demônios (onde foi tentado por Satanás) e animais perigosos, como serpentes e escorpiões. Mas, por que Deus faria isso com um de seus filhos amados?
Stephen Eyre nos alerta para um tempo de deserto, muitas vezes posterior a um momento de profundo crescimento, no qual Deus, embora pareça ausente, está bem próximo, mas agindo de modo tão profundo que não percebemos.
Isso pode parecer estranho à primeira vista, mas se lembrarmos de como muitas vezes estranhamos o nosso próprio comportamento e de que Deus geralmente frustra nossas expectativas de ações espetaculares, veremos que faz todo o sentido. Então nos lembraremos de Elias, o qual fugindo de Jezabel para o deserto, viu Deus passar não no vento fortíssimo que separou montes e esmigalhou rochas, nem no terremoto ou no fogo, mas no murmúrio sutil de uma brisa suave que fez Elias cobrir o rosto em reverência (1 Rs 19.1-13).

Nos momentos de deserto, tudo o que fazemos parece vazio, sem sentido, sem resultados. Simplesmente errado, como se as regras do jogo (o que sabemos sobre espiritualidade, leitura da Palavra e oração) tivessem mudado. Inicialmente, podemos sentir algum desânimo à medida que a leitura parece não agitar mais nosso ser e a oração parece em vão.


Mas isso é substituído por uma busca mais intensa, como Davi no Sl 63.1: Ó Deus, tu és o meu Deus, eu te busco intensamente; a minha alma tem sede de ti! Todo o meu ser anseia por ti, numa terra, seca exausta e sem água.
Para Eyre, apesar de tudo isso, pode ser que estejamos nos aproximando muito mais de Deus do que antes, a fim de sermos moldados no mais íntimo de nosso ser. Então percebemos que ao nos livrar daquilo que satisfazia nossos anseios carnais ou a nossa espiritualidade superficial, Deus quer que O reconheçamos como o único que pode nos satisfazer, e assim digamos: Tu és o meu Senhor; não tenho nenhum bem além de ti (Sl 16.2); e A minha alma descansa somente em Deus; dele vem a minha salvação (Sl 62.1).
Seguindo a mesma direção Kierkegaard nos lembra que o bom médico não é aquele que interrompe a cirurgia de emergência porque seu paciente está com dor, mas sim aquele que não o poupa, pois sabe que precisa curá-lo o quanto antes. Deus quer nos moldar à imagem de Cristo e nos aproximar dEle mesmo. Ele não nos poupará do que é imprescindível.
Mas mesmo no deserto hostil, vemos a presença generosa de Deus. Pois, os anjos o serviam. Porque Deus cuida dos seus no deserto, como diz Os 13.5: Eu cuidei de vocês no deserto. De modo muito interessante e conveniente para esta meditação, a palavra que é traduzida por “cuidei” na NVI é traduzida por “conheci” na ARA. Isso ocorre porque a palavra em questão significa conhecer, mas pode ser usada para falar de um relacionamento sexual íntimo, ou mesmo amor/ cuidado. Nisso percebemos o amor de Deus no deserto, tanto nos levando a águas mais profundas do nosso relacionamento com Ele, quanto percebendo seu cuidado, servindo-nos muitas vezes de refúgio e satisfação quando nada mais serve. Assim, vez após vez, voltamo-nos a Deus com o coração aflito e angustiado, vindos de uma vida cansativa e aparentemente sem sentido, até que, inesperadamente,  somos aliviados – vez após vez – não por bênçãos, mas pela presença de Deus.
Dessa forma, fazemos de Deus a fonte da nossa vida e aprendemos a peregrinar pelo deserto de fonte em fonte, de encontros em encontros com Deus. E nisso somos felizes, como diz o salmista: Como são felizes os que em ti encontram sua força, e os que são peregrinos de coração! Ao passarem pelo vale seco, fazem dele um lugar de fontes; as chuvas de outono também o enchem de cisternas. (Sl 84.5 e 6).
Por tudo isso, o deserto não deve ser evitado, mas atravessado. Deste modo, chegaremos ao seu fim conhecendo mais intimamente a Deus, confiando mais em seu amor e como novas pessoas, que têm suas vidas fortalecidas e renovadas diariamente, não por novas bênçãos, mas pela mesma presença maravilhosa deste bom Deus.

Nenhum comentário:

Postar um comentário