Como dito na semana passada, a
situação de deserto pode nos levar a mantermos como referência de nossa
espiritualidade a superficialidade. Isso reflete em nossas vidas diárias no que
costumamos chamar de mediocridade.
Mediocridade
não é sinônimo de inferioridade, mas significa que vivemos igual à média da
população. Isso não seria um problema, caso todos vivessem em altos níveis
morais, existenciais e espirituais. Mas será que vivemos? Não é a nossa vida
marcada, muitas vezes, pelo tédio (ou pela freqüente distração dele); pela
ansiedade; insônia; tristeza e enfado? Quantas noites dormimos com um sorriso
cansado no rosto, pensando “esse dia valeu pena!”?
Mas
será que isso é vida cristã? Uma vida de relacionamento moldada pelo Pai, Filho
e o Espírito Santo, que deveria transformar radicalmente a nossa existência?
Neste próximo
trecho de Marcos, vemos que o batismo de Jesus torna-se um paradigma para nossa
própria mudança de vida no contexto do relacionamento da Trindade, tirando-nos
da mediocridade e levando-nos a vôos mais altos.
Naquela ocasião Jesus veio de Nazaré da
Galileia e foi batizado por João no Jordão. Assim que saiu da água, Jesus viu o
céu se abrindo, e o Espírito descendo como pomba sobre ele. Então veio dos céus
uma voz: “Tu és o meu Filho amado, em ti me agrado” (Evangelho de Marcos,
capítulo 1, versículos 9 a 11).
Enquanto
João batiza a multidão para o arrependimento, surge Jesus. Vindo de Nazaré da
Galileia, uma região pobre e desprezada (como nos mostra a reação de Natanael
no evangelho de João 1.46), surge um homem de cerca de trinta anos, para ser
batizado também.
Porém,
assim que sai da água, algo diferente acontece com este Jesus de Nazaré. A
primeira coisa é que ele vê é o céu se abrindo. A palavra traduzida aqui por
“abrindo” é a mesma usada em Mc 15.38, para descrever que o véu do templo
estava se rasgando. Por isso, e pelo fato de que tanto o céu quanto o santuário
do Senhor (o antigo “Santo dos Santos”) são os lugares onde Deus habita (na
mentalidade da época), muitos entendem que este acontecimento refere-se a um
encontro entre o que é transcendente (o céu) e o que é terreno; como se o Reino
de Deus invadisse o mundo dos homens de modo especial no batismo de Jesus.
Assim
o batismo se torna o paradigma daquilo que Kierkegaard chamou de “instante”,
que é o momento em que o transcendente toca o mundano na vida do homem comum.
Para este filosofo todo ser humano deve realizar em sua existência o encontro
entre o temporal e o eterno, o finito e o infinito, a necessidade e a
possibilidade; coisa que, para ele, somente Jesus realizou. Dessa forma, o
batismo guarda um significado espiritual muito maior do que um ritual ou um
sinal, mas ele aponta para uma realidade espiritual na vida do cristão: a de
que sua vida terrena e cotidiana é o lugar em que Deus realiza esse encontro
entre céu e terra.
Por
isso a vida do cristão não é insignificante. Ela é diariamente um
empreendimento divino de trazer a este mundo o Seu Reino de amor, alegria, paz
e justiça. O cristão não é meramente chamado a ser um transformador da
realidade que o cerca; ele é inerentemente essa transformação viva e ambulante.
Ou seja, o cristão não faz missão como uma escolha, ele é a missão em si. Onde
quer que Jesus e os discípulos fossem o Reino de Deus destronava o reino de
Satanás (Mc 5.1-20 e Lc 10.17-19); assim deve ser hoje, na vida daqueles que
são discípulos de Jesus. Se tal transformação não ocorre, o dito cristão
deveria questionar-se sobre seu discipulado com Jesus, o Pai e o Espírito.
A
segunda coisa que acontece é que o Espírito desce como uma pomba sobre Jesus.
Não apenas o Reino de Deus, mas o próprio Deus na pessoa do Espírito está com
Jesus. É o Espírito que o unge para a missão (Lc 4.18-19), é no seu poder que
Jesus age, é o Espírito que o move (Mc 1.12).
Da
mesma forma é o Espírito conosco: Ele está sempre nos moldando, nos levando aos
perdidos (no pecado, na miséria social, na mediocridade do mundo “sem Deus”),
nos enchendo com o amor de Deus pelo nosso próximo, guiando nossos passos,
capacitando-nos para o trabalho, fortalecendo-nos em nossas dificuldades e nos
ajudando a levar a cruz. Sem o Espírito não podemos ser como Jesus. Por isso
Paulo nos instrui: deixem-se encher pelo
Espírito (Ef. 5.18). Isso nos leva a um outro aspecto: é o Espírito que vem
sobre nós; não O recebemos por esforço próprio. É o Espírito quem nos move à
devoção, pois anseia nos preencher plenamente. É Deus quem quer fazer parte de
nossa vida e nos convida a fazer parte da dEle. Temos correspondido a esse desejo
divino?
A última coisa é a própria voz de Deus, o Pai, alegando que Jesus é o Filho
amado, em quem Ele se agrada. Assim, o Pai confirma Jesus como o Filho de Deus,
o próprio Deus. E não apenas isso, mas aquele em quem o Pai se agrada – por quem
Jesus é e por aquilo que fará na cruz em nosso favor (Por isso o Pai me ama, porque dou a minha vida para retomá-la – Jo
10.17).
Semelhantemente,
somos feitos filhos de Deus, pois essa é a relação que Deus quer ter conosco.
Quando os discípulos retornam de uma grande campanha a favor do Reino de Deus,
Jesus não os parabeniza, mas ajusta suas perspectivas com as do Pai: Contudo alegrem-se, não porque os espíritos
submetem-se a vocês, mas porque seus nomes estão escritos nos céus (Lc
10.20). E não apenas isso, mas Deus quer nos tornar em filhos dignos do seu
agrado, ou seja, pessoas com o caráter de Jesus, com sua disposição para negarem
a si mesmos, tomarem a cruz e seguirem (imitarem) Jesus. E porque tudo o que
Jesus conquistou na cruz e todo o empreendimento do Espírito de Deus tem esse
fim – o de nos tornarmos filhos amados de Deus, nos quais Ele se agrada – esse
também deve ser o foco de toda a nossa lida.
Por
tudo isso, Deus nos chama a deixarmos a mediocridade de uma vida sem Deus e
sermos transformados pela presença do Pai, do Filho e do Espírito Santo em nós;
vivendo uma nova existência, na qual o Reino de Deus acontece em nós e
transforma a realidade que nos cerca através de nós; a qual compartilhamos com
a Trindade e que nos torna a cada dia filhos amados que agradam a Deus pelo seu
andar a vida.
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