quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

Vozes no deserto 2


     Como dito na semana passada, a situação de deserto pode nos levar a mantermos como referência de nossa espiritualidade a superficialidade. Isso reflete em nossas vidas diárias no que costumamos chamar de mediocridade.
     Mediocridade não é sinônimo de inferioridade, mas significa que vivemos igual à média da população. Isso não seria um problema, caso todos vivessem em altos níveis morais, existenciais e espirituais. Mas será que vivemos? Não é a nossa vida marcada, muitas vezes, pelo tédio (ou pela freqüente distração dele); pela ansiedade; insônia; tristeza e enfado? Quantas noites dormimos com um sorriso cansado no rosto, pensando “esse dia valeu pena!”?
     Mas será que isso é vida cristã? Uma vida de relacionamento moldada pelo Pai, Filho e o Espírito Santo, que deveria transformar radicalmente a nossa existência?
     Neste próximo trecho de Marcos, vemos que o batismo de Jesus torna-se um paradigma para nossa própria mudança de vida no contexto do relacionamento da Trindade, tirando-nos da mediocridade e levando-nos a vôos mais altos.
     Naquela ocasião Jesus veio de Nazaré da Galileia e foi batizado por João no Jordão. Assim que saiu da água, Jesus viu o céu se abrindo, e o Espírito descendo como pomba sobre ele. Então veio dos céus uma voz: “Tu és o meu Filho amado, em ti me agrado” (Evangelho de Marcos, capítulo 1, versículos 9 a 11).
      Enquanto João batiza a multidão para o arrependimento, surge Jesus. Vindo de Nazaré da Galileia, uma região pobre e desprezada (como nos mostra a reação de Natanael no evangelho de João 1.46), surge um homem de cerca de trinta anos, para ser batizado também.
     Porém, assim que sai da água, algo diferente acontece com este Jesus de Nazaré. A primeira coisa é que ele vê é o céu se abrindo. A palavra traduzida aqui por “abrindo” é a mesma usada em Mc 15.38, para descrever que o véu do templo estava se rasgando. Por isso, e pelo fato de que tanto o céu quanto o santuário do Senhor (o antigo “Santo dos Santos”) são os lugares onde Deus habita (na mentalidade da época), muitos entendem que este acontecimento refere-se a um encontro entre o que é transcendente (o céu) e o que é terreno; como se o Reino de Deus invadisse o mundo dos homens de modo especial no batismo de Jesus.
     Assim o batismo se torna o paradigma daquilo que Kierkegaard chamou de “instante”, que é o momento em que o transcendente toca o mundano na vida do homem comum. Para este filosofo todo ser humano deve realizar em sua existência o encontro entre o temporal e o eterno, o finito e o infinito, a necessidade e a possibilidade; coisa que, para ele, somente Jesus realizou. Dessa forma, o batismo guarda um significado espiritual muito maior do que um ritual ou um sinal, mas ele aponta para uma realidade espiritual na vida do cristão: a de que sua vida terrena e cotidiana é o lugar em que Deus realiza esse encontro entre céu e terra.
     Por isso a vida do cristão não é insignificante. Ela é diariamente um empreendimento divino de trazer a este mundo o Seu Reino de amor, alegria, paz e justiça. O cristão não é meramente chamado a ser um transformador da realidade que o cerca; ele é inerentemente essa transformação viva e ambulante. Ou seja, o cristão não faz missão como uma escolha, ele é a missão em si. Onde quer que Jesus e os discípulos fossem o Reino de Deus destronava o reino de Satanás (Mc 5.1-20 e Lc 10.17-19); assim deve ser hoje, na vida daqueles que são discípulos de Jesus. Se tal transformação não ocorre, o dito cristão deveria questionar-se sobre seu discipulado com Jesus, o Pai e o Espírito.
     A segunda coisa que acontece é que o Espírito desce como uma pomba sobre Jesus. Não apenas o Reino de Deus, mas o próprio Deus na pessoa do Espírito está com Jesus. É o Espírito que o unge para a missão (Lc 4.18-19), é no seu poder que Jesus age, é o Espírito que o move (Mc 1.12).
     Da mesma forma é o Espírito conosco: Ele está sempre nos moldando, nos levando aos perdidos (no pecado, na miséria social, na mediocridade do mundo “sem Deus”), nos enchendo com o amor de Deus pelo nosso próximo, guiando nossos passos, capacitando-nos para o trabalho, fortalecendo-nos em nossas dificuldades e nos ajudando a levar a cruz. Sem o Espírito não podemos ser como Jesus. Por isso Paulo nos instrui: deixem-se encher pelo Espírito (Ef. 5.18). Isso nos leva a um outro aspecto: é o Espírito que vem sobre nós; não O recebemos por esforço próprio. É o Espírito quem nos move à devoção, pois anseia nos preencher plenamente. É Deus quem quer fazer parte de nossa vida e nos convida a fazer parte da dEle. Temos correspondido a esse desejo divino?
     A última coisa é a própria voz de Deus, o Pai, alegando que Jesus é o Filho amado, em quem Ele se agrada. Assim, o Pai confirma Jesus como o Filho de Deus, o próprio Deus. E não apenas isso, mas aquele em quem o Pai se agrada – por quem Jesus é e por aquilo que fará na cruz em nosso favor (Por isso o Pai me ama, porque dou a minha vida para retomá-la – Jo 10.17).
    Semelhantemente, somos feitos filhos de Deus, pois essa é a relação que Deus quer ter conosco. Quando os discípulos retornam de uma grande campanha a favor do Reino de Deus, Jesus não os parabeniza, mas ajusta suas perspectivas com as do Pai: Contudo alegrem-se, não porque os espíritos submetem-se a vocês, mas porque seus nomes estão escritos nos céus (Lc 10.20). E não apenas isso, mas Deus quer nos tornar em filhos dignos do seu agrado, ou seja, pessoas com o caráter de Jesus, com sua disposição para negarem a si mesmos, tomarem a cruz e seguirem (imitarem) Jesus. E porque tudo o que Jesus conquistou na cruz e todo o empreendimento do Espírito de Deus tem esse fim – o de nos tornarmos filhos amados de Deus, nos quais Ele se agrada – esse também deve ser o foco de toda a nossa lida.
    Por tudo isso, Deus nos chama a deixarmos a mediocridade de uma vida sem Deus e sermos transformados pela presença do Pai, do Filho e do Espírito Santo em nós; vivendo uma nova existência, na qual o Reino de Deus acontece em nós e transforma a realidade que nos cerca através de nós; a qual compartilhamos com a Trindade e que nos torna a cada dia filhos amados que agradam a Deus pelo seu andar a vida.

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