quinta-feira, 22 de março de 2012

O caminho do discipulado 8 - Discípulos restaurados


Como foi dito no primeiro artigo desta série Marcos 8.22-10.52 trata da incapacidade dos discípulos de verem Jesus como Ele realmente é. Vimos que isso também os levou a uma incompreensão sobre o que Ele iria fazer (sobretudo na cruz), que tipo de Messias/ Rei Salvador Ele era e, consequentemente, para quem daria o Seu Reino. Também foi dito que este trecho (que muitos consideram central no evangelho de Marcos) começa e termina com a cura de cegos. Um em duas etapas, o outro em apenas uma.
Agora observaremos como este segundo cego vê Jesus e como se coloca diante dEle. Neste trecho, vários dos temas de Marcos 8.22-10.45 são retomados, apresentando a visão correta sobre Jesus, sua salvação (ou seu Reino) e a quem e a quê se destina.

Mc 10.46-52
46Então chegaram a Jericó. Quando Jesus e seus discípulos, juntamente com uma grande multidão, estavam saindo da cidade, o filho de Timeu, Bartimeu, que era cego, estava sentado à beira do caminho pedindo esmolas. 47Quando ouviu que era Jesus de Nazaré, começou a gritar: "Jesus, Filho de Davi, tem misericórdia de mim!"
48Muitos o repreendiam para que ficasse quieto, mas ele gritava ainda mais: "Filho de Davi, tem misericórdia de mim!"
49Jesus parou e disse: "Chamem-no". E chamaram o cego: "Ânimo! Levante-se! Ele o está chamando". 50Lançando sua capa para o lado, de um salto pôs-se em pé e dirigiu-se a Jesus.
51"O que você quer que eu lhe faça?", perguntou-lhe Jesus. O cego respondeu: "Mestre, eu quero ver!"
52"Vá", disse Jesus, "a sua fé o curou". Imediatamente ele recuperou a visão e seguiu Jesus pelo caminho.

Jesus entrara em Jericó. Jesus está saindo de Jericó. Aparentemente, não realizou nenhuma ação ali. Nenhum milagre, nenhum ensino. Ainda assim, uma grande multidão o está seguindo e, junto a ele, estão seus discípulos.
Neste momento, já perto de sair de Jericó, há um homem cego, à beira do caminho, pedindo esmolas. Ele ouve um tumulto. De alguma forma, ele ouve que é Jesus de Nazaré quem está passando. Possivelmente, ele já ouvira boatos sobre esse nazareno. Alguns talvez tenham dito que ele era o messias, o Filho (o Descendente) do famoso rei Davi, prometido por Deus há séculos para trazer o Reino perfeito de Deus ao povo judeu.
Quando descobre que Jesus está passando por ali, o cego começa a gritar, pedindo misericórdia. A multidão, pouco interessada no cego, julgando que Jesus também o ignorava, manda-o “calar a boca”. Nisso, ele começa a gritar cada vez mais a fim de ser ouvido por Jesus, pois ele sabe que esta é a sua chance de restauração.
Quando atentamos ao modo desesperado deste segundo cego (o primeiro está em Mc 8.22ss) gritar a Jesus e o modo como a multidão tenta silenciá-lo, podemos ficar espantados. Por que tanto desespero? Por que a multidão parece estar contra ele?
Para entendermos isso, é preciso lembrar o modo como a cegueira era vista na época. Não como uma deficiência ou resultado infeliz de um mero acidente, mas como consequência de um pecado grave. Se as traduções da NVI e da ARA estão corretas (ele “recuperou” a visão ou “tornou” a ver), isso quer dizer que nasceu com a visão perfeita, mas a perdeu em algum momento da vida. Aos olhos de todos, isso teria ocorrido como punição de Deus para algum pecado grave que ele, certamente, teria cometido.
Isso nos ajuda a percebemos algumas coisas. Primeiro, ele está perto da saída da cidade e não no centro desta. Embora a saída da cidade ofereça um local de transito de possíveis ajudadores, também demonstra sua marginalização social. Segundo, o nome Bartimeu significa “filho de Timeu”. A aparente redundância revela um ser sem nome próprio, como se não valesse a pena mencioná-lo. Terceiro, ele pede esmolas, como um excluído da economia local. Por último, ele está à beira do caminho (em contraste com as pessoas no caminho, v. 52). Deste modo, temos um homem completamente marginalizado, excluído da sociedade.
E o que é pior: excluído do Reino de Deus. Afinal de contas, o povo o via como alguém castigado por Deus. Isso fica claro na tentativa de silenciar o cego. Aos olhos deles, gente como Bartimeu seria escorraçada do Reino de Deus. Embora, na parte de Marcos em que este texto se encontra, sejam os discípulos os que normalmente impeçam as pessoas de chegarem-se a Jesus (como no caso das crianças; ver “O Caminho do discipulado 5”), seria estranho que, tendo presenciado outras curas semelhantes, eles agissem desse modo. Parece melhor supor que a multidão age assim, ou, pelo menos, muitos dos que a compunham.
Influenciados pelo judaísmo dos fariseus, esses muitos viam o Reino de Deus como algo dado aos judeus que o merecessem através da obediência da Lei de Deus. Assim, esse castigado, esse amaldiçoado por Deus, certamente não merecia participar deste Reino de pureza e retidão. Por isso, julgavam que Jesus não iria fazer nada por este cego.
Aos olhos deles, o cego estava excluído do Reino de Deus e da misericórdia de Jesus (o Cristo, o Messias), da mesma forma que estava da sociedade de Jericó.
De modo semelhante, a Igreja de hoje parece considerar muitos como excluídos do Reino de Deus e da misericórdia de Jesus Cristo.
Certa vez, ouvi um seminarista contar sobre seu irmão homossexual que buscou a Deus numa igreja. Quando o pastor percebeu que seu comportamento parecia um pouco efeminado escorraçou o jovem de lá, como se fosse um ser impuro que contaminaria a tudo e a todos daquela “comunidade”. Desde então, mesmo com todos os esforços do irmão seminarista e da mãe cristã, esse jovem não quer saber mais de Deus ou da igreja.
Será que isso é uma cena incomum? Será que não há outros grupos que embora não sejam rejeitados, também não são acolhidos e levados a Jesus? Poucos são os trabalhos em favor de prostitutas e encarcerados. Em contrapartida há muitos atendimentos a moradores de ruas e usuários de drogas. Mas será que isso não decorre de uma visão “vitimizadora” dessas pessoas? Ou será que são somente esses que estão perdidos e sem possibilidade de recuperação sem auxílio externo? Quão difícil não deve ser para um ex-presidiário ou uma ex-prostituta conseguir um emprego? A situação, infelizmente, muda quando o nosso amor deve ser dirigido a um pecador que não foi justificado pela opinião pública. Parece que nos esquecemos de que fomos chamados, quando éramos pecadores, merecedores à ira de Deus. Será que situações assim não têm auxiliado a formação de “igrejas” que negam o pecado, mas acolhem o pecador?
Não é o caso de anunciarmos o oposto disso; afirmar o pecado, mas também a graça de Deus?
Afirmar, de modo semelhante a Dostoiévski:  No último julgamento Cristo nos dirá: Vinde, vós também! Vinde, bêbados! Vinde, vacilantes! Vinde, filhos do opróbrio! E dir-nos-á: Seres vis, vós que sois à imagem da besta e trazem a sua marca, vinde porém da mesma forma, vós também!. E os sábios e prudentes dirão: Senhor, por que os acolhes? E ele dirá: Se os acolho, homens sábios, se os acolho, homens prudentes, é porque nenhum deles foi jamais julgado digno. E ele estenderá os seus braços, e cairemos a seus pés, e choraremos e soluçaremos, e então compreenderemos tudo, compreenderemos o evangelho da graça! Senhor, venha o teu reino!”
Não é o caso de nos achegarmos aos necessitados, dizendo: “Clame a Jesus, insistentemente. Busque-O com fé, pois Ele restaura a todos, sem distinção de sexo, raça, histórico ou pecados cometidos. Para que todos possam seguí-lo, como discípulos, em direção à Sua cruz e à Sua glória”?
Esse é o nosso dever, visto a Igreja de hoje considerar muitos como excluídos do Reino de Deus e da misericórdia de Jesus Cristo.
Pois não é isso que acontece neste momento, em que Jesus tem misericórdia de Bartimeu, o qual é restaurado à sociedade e ao Reino de Deus.
A partir do v. 49, percebemos que Jesus não estava surdo ao clamor de Bartimeu. Ele pára e ordena que o chamem. Nisto, a multidão, que antes repreendia Bartimeu, agora o anima, dizendo Coragem! Levante-se! Ele o está chamando (v.49). Ao ouvir a resposta tão esperada, ele levanta num salto, jogando de lado o manto de seus dias de mendicância e dirige-se a Jesus, que responde aos seus clamores com uma pergunta: “O que você quer que eu lhe faça?”. Ele responde: “Grande Mestre, eu quero ver!”
Jesus o cura e diz: “Vá! A sua fé o salvou”. Mas, ao contrário de ir ou de afastar-se, ele seguia Jesus no caminho.
Se, por um lado, o silêncio de Jesus parecia confirmar os preconceitos da multidão, por outro deu ocasião à manifestação da fé de Bartimeu. Não que a fé gere a cura, mas que é a condição para buscá-la, como diz Hb 11.6: Sem fé é impossível agradar a Deus, pois quem dele se aproxima precisa crer que ele existe e que recompensa aqueles que o buscam.
É neste sentido que devemos observar as falas de Bartimeu. Primeiro, ele chama Jesus de Filho de Davi, o que significa chamá-lo de Messias ou de Cristo, dizendo com isso que Jesus é o Rei que trará o Reino de Deus, no qual não há cegueira, marginalização ou desprezo. Além disso, chama-o de Rabôni (traduzido como Mestre). Segundo Joachim Jeremias, (na p. 248 da “Teologia do Novo Testamento”) ambos os títulos revelam que Bartimeu possui uma “grande confiança na bondade e compaixão de Jesus” – o que se percebe também no grito insistente por misericórdia. Ao contrário da multidão, este homem marginalizado crê que no Reino de Deus há um lugar para gente como ele, não por seus méritos ou por sua fé, mas pela misericórdia de Jesus, o qual não somente o introduz no Reino, mas o cura de todas as mazelas.
Resumindo, Bartimeu clama desesperadamente, levanta-se num salto quando chamado, lança fora seu manto, e pede diretamente pela cura, pois tem plena confiança de que Jesus é o Messias cheio de poder e autoridade sobre todas as coisas (incluindo sua situação), mas também o mestre misericordioso que se compadecerá dele.
Além disso, vemos aqui que a salvação não se restringe a um “salvar almas”, mas a mudar a realidade integral de Bartimeu; de modo que ele começa a viver aqui uma parte significativa do que viverá, quando o Reino de Deus estiver plenamente manifestado neste mundo. Isso pode ser dito sobre Bartimeu, pois a palavra utilizada no v. 52 pode ser traduzida tanto – num caso mais específico – por “curou” (NVI), quanto – de modo mais amplo – por salvou (ARA). Alguns teólogos (como John Stott) chamam essa realidade de Já e ainda não, pois Bartimeu já possui a cura, mas ainda não está livre da morte, do pecado, sofrimento etc.
Não bastasse isso, vemos que a salvação tem uma consequência. Embora Jesus diga Vá!, Bartimeu o seguia no caminho. Aquele que estava à beira do caminho, agora está no caminho, devolvido à sociedade humana, podendo voltar aos pais, procurar um emprego, constituir família, adentrar a sinagoga ou o templo. Mas ao invés de perseguir o que não tinha, ele “deixa tudo” de lado e passa a seguir Jesus, não como um dos Doze, mas certamente como um discípulo de Jesus.
Portanto toda a situação de Bartimeu é transformada, porque Jesus teve misericórdia de Bartimeu, o qual foi restaurado à sociedade e ao Reino de Deus, tornando-se discípulo de Jesus.
É isso que Jesus está fazendo hoje. Pois Jesus tem misericórdia dos marginalizados e desprezados, restaurando os excluídos e capacitando-os a seguí-lo.
Foi o que aconteceu com uma jovem, cuja história James Bryan Smith nos conta no seu livro, O maravilhoso e bom Deus, no capítulo intitulado Deus é amor. A moça solteira havia engravidado. O pai da criança não demonstrou nenhum interesse em ajudá-la. Apesar disso, a moça decidiu ter a criança e após algum tempo voltou à igreja de sua infância. Lá, achou que seria bom conversar com as jovens da igreja para alertá-las sobre as pressões e perigos em relação ao sexo antes do casamento. Ao perguntar ao pastor se poderia fazê-lo, este a proibiu, dizendo que temia que ela incomodasse as garotas. Além disso, algum tempo depois, negou-se a batizar a criança dela, pelo modo como se deu a gravidez. Por isso, ela deixou a igreja. Após algum tempo, procurou outra igreja, onde foi aceita e sua filha batizada. Hoje, as duas são missionárias na África.
Tal restauração só é possível mediante o poder e misericórdia de Jesus. Porque só Ele transforma usuários de drogas em pessoas sóbrias e responsáveis; homossexuais em pessoas com uma sexualidade que une “corpo e alma”; criminosos e pecadores em missionários da esperança e do amor de Deus. Só Ele traz esperança ao desiludido, força ao exausto, consolo ao amargurado, restauração a casos “sem solução”.
Pois Ele é o Rei soberano sobre todas as coisas; poderoso para restaurá-las integralmente. Seu Reino de justiça, santidade, perfeição, alegria, paz e amor está inundando este mundo tenebroso e doente, pouco a pouco, até substituí-lo por completo, como o sol, que dissipa as trevas ao amanhecer.
Pois Ele é misericordioso para todos quantos O buscam, confiando em Sua bondade e compaixão. Seu Reino é para todos (independente da lista ou da gravidade dos nossos pecados), e Ele começa já, trazendo cura e restauração significativas (ainda que, algumas vezes, parciais), as quais serão plenas no tempo determinado por Deus, quando todo o nosso sofrimento e pecado serão eliminados de uma vez por todas. Tudo isso foi conquistado na cruz, quando este maravilhoso Rei morreu em nosso lugar por sua misericórdia e ressuscitou dos mortos depois de três dias por seu poder, para dar a todos que confiam nEle está incomparável salvação.
Que nós possamos confiar nEle e que isto possa resultar em três coisas. Primeiro, num clamor insistente a Jesus, cheio de fé em Sua misericórdia e poder, sempre que estivermos necessitados. Segundo, que O sigamos como Seus discípulos, até a cruz se necessário (de modo bem diferente daqueles que buscam o favor de Jesus e O abandonam sem gratidão), deixando tudo o que desejamos, mas que não se compara Àquele que nos amou. Terceiro, numa ação integral em favor dos desprezados ao nosso redor, cuidando deles em tudo que necessitam (sendo nós usados como as mãos do próprio Jesus) e convidando-os a crerem em tão maravilhosa salvação.
Concluindo esta série, não deixemos que uma compreensão errada de Jesus e Seu Reino façam-nos trancar as pessoas do lado de fora do Reino de Deus. Mas, reconhecendo que Jesus tem misericórdia dos marginalizados e desprezados e restaura os excluídos, capacitando-os a seguí-lo, busquemos a Sua misericórdia, confiando que Ele agirá em nosso favor; tornemo-nos seguidores dEle e convidemos outros a fazerem o mesmo.

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