No
artigo anterior desta série, vimos que a oração é o meio de Jesus, e o nosso,
para mantermos o caminho certo no discipulado. Pois essa nos coloca na presença
de Deus, que nos orienta para o que Ele deseja que façamos. No entanto, não
basta apenas saber o quê Jesus veio fazer, mas também a quem. Neste texto vemos
Jesus chamando discípulos ainda mais desqualificados, pelo menos aos olhos da
sociedade, que Pedro, André, Tiago e João (Mc 1.16-20). Pois Jesus está
chamando “pecadores” para serem seus discípulos.
Mc
2.13-17:
13De novo, saiu Jesus para junto
do mar, e toda a multidão vinha ao seu encontro, e ele os ensinava. 14Quando
ia passando, viu a Levi, filho de Alfeu, sentado na coletoria e disse-lhe:
Segue-me! Ele se levantou e o seguiu.
15Achando-se Jesus à mesa na casa
de Levi, estavam juntamente com ele e com seus discípulos muitos publicanos e
pecadores; porque estes eram em grande número e também o seguiam. 16Os
escribas dos fariseus, vendo-o comer em companhia dos pecadores e publicanos,
perguntavam aos discípulos dele: Por que come e bebe ele com os publicanos e
pecadores? 17Tendo Jesus ouvido isto, respondeu-lhes: Os sãos não
precisam de médico, e sim os doentes; não vim chamar justos, e sim pecadores.
A
cena inicia-se de modo comum ao evangelho: Jesus sai, a multidão aproxima-se e
Ele começa a ensiná-los. Em algum momento do seu “passeio”, Jesus vê Levi
(chamado de Mateus no evangelho de Mateus 9.9) sentado na coletoria de
impostos, Jesus o chama e ele O segue.
À
primeira vista, nada de novo. Para nós. Um judeu da época poderia
escandalizar-se ao ver isso. Isso porque os coletores de impostos eram vistos como
traidores da nação judaica, porque eles colhiam impostos para o Império Romano
e, além disso, muitos cobravam além do que deviam para encher os próprios
bolsos. Por isso, em Lc 3, quando os cobradores de impostos (também conhecidos
como publicanos) querem saber o que devem fazer para não serem condenados por
Deus, João Batista lhes responde: “Não
cobrem nada além do que lhes foi estipulado” (Lc 3. 13). Pela mesma razão,
o recém-convertido Zaqueu, um cobrador de impostos, para revelar seu
arrependimento afirma: “e se de alguém
extorqui alguma coisa, devolverei quatro vezes mais” (Lc 19.8). Além disso,
Jesus o chamou a segui-lo. Esse foi o mesmo chamado que fez aos quatro
pescadores para segui-lo como seus discípulos.
Assim,
a situação começa a tomar outro rumo. Mas ela torna-se ainda mais incômoda,
pelo menos para os escribas dos fariseus (v.16) [os escribas eram pessoas
dedicadas a copiar a Lei de Moisés e ensiná-la ao povo; os fariseus eram uma
facção político-religiosa que se dedicava a um cumprimento rigoroso dessa Lei e
que desprezava os praticantes menos rigorosos como inferiores e impuros diante
de Deus]. Pois vemos que Jesus não apenas chama Levi para segui-lo como vai a
casa dele para uma refeição. O texto grego diz que Jesus estava reclinado à
mesa, o que significa uma grande refeição, com muitos convidados, como numa
festa. As portas estariam abertas o que permitiam, muitas vezes, que convidados
indesejados aparecessem (como a mulher “pecadora” na casa do fariseu em Lc
7.36-50). Neste caso os escribas fariseus entraram, os quais provavelmente
estavam apenas como espectadores, visto o seu escândalo expresso na pergunta
feita aos discípulos de Jesus, no v.16 do texto que estamos lendo.

Resumindo:
Jesus tinha uma grande intimidade com esse povo sujo, indecente, pecador.
Cobradores de impostos corruptos, ladrões, prostitutas etc. Eles o seguiam,
comiam com Ele e, muitas vezes, haviam sido chamados por Ele.
Aqui
há um contraste entre a multidão que se aproximou de Jesus e foi ensinada por
Ele (que pode ser posta junto aos escribas e fariseus) e os pecadores que
seguem Jesus. Bonhoeffer diz que o chamado de Jesus nos separa do mundo. De
modo interessante, aqui são os pecadores que são separados, por um lado, da
grande multidão que deseja o ensino de Jesus e, por outro, dos escribas dos
fariseus que se consideram superiores aos que não são tão rigorosos quanto eles
na prática da Lei de Moisés. Ou seja, não se trata de virtuosos separando-se de
um mundo em decadência, mas de pecadores sendo separados de um mundo
aparentemente religioso, devoto e, por que não dizer, aparentemente santo.
De
fato, as palavras finais de Jesus, no v.17,
Os sãos não precisam de médico, e sim os doentes; não vim chamar justos, e sim
pecadores, carregam essa separação. Pois a tradução “Os sãos” ocorre aqui
como contraste a “os doentes”. A palavra traduzida como “sãos” poderia ser
traduzida como “os capazes”, porque é com esse sentido que essa palavra é
traduzida em outros textos do evangelho de Marcos: Voltando, achou-os dormindo; e disse a Pedro: Simão, tu dormes? Não pudeste
vigiar nem uma hora? (Mc 14.37); e
este, onde quer que o apanha, lança-o por terra, e ele espuma, rilha os dentes
e vai definhando. Roguei a teus discípulos que o expelissem, e eles não puderam.
(Mc 9.18); porque, tendo sido muitas
vezes preso com grilhões e cadeias, as cadeias foram quebradas por ele, e os
grilhões, despedaçados. E ninguém podia subjugá-lo. (Mc 5.4).
O
que Jesus está dizendo é que não veio chamar os capazes de salvar-se ou de
seguirem um caminho de fé, espiritualidade, ou rigor religioso. Jesus não veio
chamar uma grande multidão que ouve seus ensinos e depois volta para o seu
dia-a-dia. Jesus veio chamar pecadores; pessoas doentes de uma doença mortal
(como disse Kierkegaard) para a qual não há cura, espiritualidade, ritual de
purificação, religião ou terapia baseada na capacidade do homem. Para fazer
parte da turma de Jesus, você tem que reconhecer-se como doente, incapaz,
pecador. O que significa que aos olhos de Deus você se encaixa na descrição do
apóstolo Paulo, em sua carta aos Efésios, cap. 2, v.1-3: Vocês estavam mortos em suas transgressões e pecados nos quais
costumavam viver, quando seguiam a presente ordem deste mundo e o príncipe do
poder do ar [Satanás] e o espírito
que agora está atuando nos que vivem na desobediência [a Deus]. Anteriormente, todos nós também vivíamos
entre eles, satisfazendo as vontades da nossa carne, seguindo os seus desejos e
pensamentos. Como os outros, éramos por natureza merecedores da ira [o
castigo de Deus].
É
a este tipo de pessoa que o chamado de Jesus, o Filho de Deus, é feito. Um
chamado para a intimidade com Jesus, para o discipulado (o seguir Jesus e
tornar-se como Ele, possuindo o seu caráter e vida).
Em
outras palavras, seguir Jesus, não é para os capazes, os religiosos, os
espirituais, ou aqueles em processo de evolução (seja moral ou espiritual).
Seguir Jesus é para pecadores. Em qual grupo você se encontra? Aquele que não se
reconhece como pecador incapaz de salvar-se, como merecedor do castigo de Deus,
não pode seguir Jesus. Pois Jesus veio para os doentes. Sua cura para a doença
do pecado encontra-se na cruz, na qual morreu no lugar de seus seguidores,
pagando por seus pecados, a fim de que eles tenham vida eterna com Ele, que
ressuscitou dentre os mortos. Deste modo os discípulos de Jesus são separados
do mundo da religião, espiritualidade e terapia humanas para um caminho
de salvação e perdão de Deus; de discipulado e intimidade com Deus.
Como
disse Brennan Manning, “todos somos mendigos, os cristãos são simplesmente
mendigos que sabem onde encontrar pão”. São mendigos que comeram do pão e
chamam outros mendigos (pecadores) para comerem com eles. Pois aos discípulos
de Jesus é dada a tarefa de pregar o evangelho (o chamado ao discipulado e
intimidade com Jesus) a todas as pessoas em todo o mundo (Mc 16.15) [em todas
as casas, ruas, vizinhanças, escolas, locais de trabalho, em todas as nações e
povos, línguas, dialetos e sotaques], pois todos somos pecadores, merecedores
da ira e necessitados da cura, salvação e perdão que só podem ser encontradas
em Jesus, o Filho de Deus, que morreu por nós na cruz e ressuscitou para nos
dar vida eterna. Porém isso nos leva a um caminho de aproximação. Pois se
seguimos Jesus, nos afastamos do que Ele se afasta e nos aproximamos de quem
Ele se aproxima: os pecadores. Com quem comemos? Com quem temos intimidade? Com
os capazes e bem-sucedidos moral e espiritualmente ou com os pecadores
(“corruptos, ladrões e prostitutas”) de nosso mundo cotidiano? Devemos ter o
cuidado de não sermos envergonhados diante das palavras de Lutero, que disse:
“Aquele que só quer viver entre crentes, é inimigo do evangelho”.
Assim,
o chamado de Jesus é separação. Não a separação realizada pelos melhores e santos,
dos capazes e merecedores da salvação. Mas a realizada por Deus, através de
Jesus na cruz e na ressurreição, em favor de pecadores impuros e doentes que
seguem Jesus, como seus discípulos, que se tornam cada vez mais pessoas como
Ele. Também é um chamado de aproximação dos pecadores e doentes ao nosso redor
(e longe também) para dizer a eles: “eu sei onde há pão!”.
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