No evangelho de Marcos, há três textos que nos
ensinam diretamente sobre o chamado de Jesus ao discipulado: o chamado de João,
Tiago, Pedro e André (1.16-20); o de Levi e dos pecadores (2.13-17) e o dos
Doze (3.13-19). Porém, esses textos estão separados (ou deveríamos dizer
conectados) por outros textos que revelam a autoridade de Jesus sobre as
doenças (a cura da sogra de Pedro), os demônios (na sinagoga de Cafarnaum), a
impureza associada ao pecado (leproso), os pecados (o paralítico levado na maca
por seus quatro amigos), o modo de compreender-se e praticar-se a Lei de Moisés
(o jejum e o sábado) e as pessoas, de quaisquer (todas as) nacionalidades (Judeia,
Jerusalém, Idumeia, redondezas do rio Jordão, Tiro e de Sidom).
Ora, por que isso? Porque mais importante do que
como seguir é quem seguir. Ainda mais, considerando que seguir é imitar (veja o
segundo texto dessa série). Como podemos seguir Jesus se não o conhecemos? No
entanto, tratar da soberania de Jesus em cada caso ficaria fora de propósito
nessa série e será mais bem abordado em outra oportunidade. Por enquanto basta
sabermos que Jesus é Deus, é Rei soberano sobre todas as coisas e todos têm de
sujeitar-se a Ele. No entanto, algo chama a atenção nesses trechos. Jesus ora.
Jesus afirma que possui um propósito, uma missão.
Como imitadores de Jesus, os discípulos (leitores
de Marcos) são convocados a viver sob uma nova direção. Caso não reconheçam
isto, não poderão seguir Jesus. Caso nós não reconheçamos isto não podemos
entender para o quê ou em que condição nós fomos chamados. Assim, antes de
prosseguirmos a série, precisamos de algo que nos ajude a redefinir a nossa
caminhada sempre que surge o risco de um desvio. Como veremos a oração é o meio
de Jesus, e o nosso, para mantermos o caminho certo.
De madrugada, quando ainda estava escuro, Jesus
levantou-se, saiu de casa e foi para um lugar deserto, onde ficou orando. Simão
e seus companheiros foram procurá-lo e, ao encontrá-lo, disseram: "Todos
estão te procurando!" Jesus respondeu: "Vamos para outro lugar, para
os povoados vizinhos, para que também lá eu pregue. Foi para isso que eu
vim". Então ele percorreu toda a Galileia, pregando nas sinagogas e
expulsando os demônios. (Mc
1.35-39)
O que estava acontecendo? Jesus levara seus novos
discípulos para a sinagoga em Cafarnaum. Lá, enquanto ensinava, um demônio
manifesta-se, mas é repreendido por Jesus. Esta notícia espalhara-se por toda
aquela região. Além disso, Jesus curara a sogra de Pedro, a qual estava de
cama. Como consequência dessas coisas, ao anoitecer, depois do pôr-do-sol, o
povo levou a Jesus todos os doentes e endemonhiados. Toda a cidade se reuniu à
porta da casa e Jesus curou muitos que sofriam de várias doenças. Também
expulsou muitos demônios...(Mc 1.32-34).
Com isso, surgiu um risco. Jesus viera para
ensiná-los, para proclamar o Reino de Deus e a fé e o arrependimento
necessários para participar deste Reino (Mc 1.15). Porém, o povo não vinha, ao
anoitecer, para ouvir Suas boas novas, mas para que Ele as aliviasse de seus
sofrimentos. O povo estava reduzindo Jesus a um curandeiro, dando maior
importância ao que Ele poderia fazer por eles do que com o chamado ao Seu
Reino. Por isso, no dia seguinte, Simão e seus companheiros saem à
procura de Jesus, pois todos o estão procurando; não o Messias,
não profeta, mas o curandeiro. Isso fica evidente quando consideramos a
correção de Jesus quando diz: Foi para isso que eu vim.
Porque, de fato, há um risco de reduzirmos Jesus
àquele que pode satisfazer-nos. Não que o busquemos sempre com caprichos ou
desejos consumistas. Muitas vezes, como neste trecho, as necessidades são reais
e trazem-nos enorme sofrimento; nesse momento o que nos move é o desespero, a
dor, a aflição. Diante disso, Jesus não nos rejeita. Ele curou enfermos e
endemonhiados antes e logo depois deste trecho do evangelho. O problema está em
reduzirmos Jesus, a vida cristã e a missão da Igreja a apenas isso; um SUS de
Deus.
Pois não foi para isso que Jesus veio e não foi
para isso que nos chama a Ele e nos envia ao mundo. É o próprio Jesus que nos
mostra o caminho certo com suas palavras e atos: Jesus respondeu:
"Vamos para outro lugar, para os povoados vizinhos, para que também lá eu pregue.
Foi para isso que eu vim". Então ele percorreu toda a Galileia, pregando
nas sinagogas e expulsando os demônios.
A pregação do evangelho que está resumido em Mc
1.15 (e que foi explanado no primeiro artigo desta série), é atitude central de
Jesus em seu ministério (Mc 1.14-15, 21, 39; 2.2, 13; 4; 6.2, 6, 12, 34 etc).
Dos textos listados o último é de especial revelação para nós, pois ele traz a
compaixão de Jesus ligada ao seu ensino. A multiplicação dos pães aparece
depois e como uma resposta à “intercessão” dos discípulos. Isto concorda com a parte
inicial de Marcos, na qual as curas de doentes e endemonhiados aparecem sempre
como um sinal da autoridade de Jesus ou da manifestação do seu Reino de Deus,
que substitui o reino de Satanás. Por isso a ligação sempre frequente em Marcos
entre a pregação e a expulsão de demônios (e os demais milagres). Assim, o
leproso é enviado como testemunha de Jesus (1.44), o paralítico serve de
testemunha da autoridade de Jesus de perdoar pecados e o “ex-endemonhiado” é
enviado aos seus como testemunha de Jesus e seu Reino (Mc 5.19-20). Dessa
forma, os milagres são tanto a evidência da autoridade de Jesus, quanto as
primeiras “amostras” do Reino que Ele proclamava.
Portanto, a discussão entre qual deve ser a missão
da igreja, ou como deve ser sua inserção, fica sem sentido. A missão é
integral, devendo atingir todas as necessidades do ser humano, mas deve ser
essencialmente evangelística, pois foi para isso que nosso Senhor veio.
No entanto, o que impediu essa redução de Jesus a
um mero curandeiro? O que lhe permitiu voltar-se à sua missão? Entre a redução
e a agenda seguinte de Jesus está a oração. De madrugada, quando ainda
estava escuro, Jesus levantou-se, saiu de casa e foi para um lugar deserto,
onde ficou orando. É este tempo solitário (De madrugada, quando ainda
estava escuro, fora de casa, em um lugar deserto) junto a
Deus (o Pai e o Espírito) que define a agenda de Jesus.
No entanto, dizer que Jesus estava à procura de
poder ou simples orientação é negar a essência de seu relacionamento na
Trindade. Jesus não é um empregado da Trindade, mas faz parte dela. Também não
é um curandeiro ávido por sucesso, caso contrário manteria-se nesta carreira
que já se mostrava bem-sucedida, ou iria para Jerusalém (ou Roma) ao invés das
demais regiões pobres da Galileia. Não. Jesus ama o Pai e o Espírito. Eles
buscam a glória um do outro.
Esse tempo devocional de Jesus tem duas implicações
para nós: submissão e amor a Deus.
Submissão:
Para comentar isso cito as palavras de Paul Freston: ...ao conservar meu
plano, o desejo de sucesso, mesmo não sendo com o intuito de me gloriar
diante dos homens, continua sendo “de mim mesmo”. Até que eu abra mão do meu
projeto, do meu desejo de sucesso (para o reino de Deus, claro), não há
súplicas que me libertem “de mim mesmo”. Tenho de perder a autonomia, não só na
execução, mas também na elaboração do projeto. Meus projetos não
têm eficácia no reino de Deus, não importa como sejam executados. Não são
“aquilo que vi o Pai fazer” [e por que não incluir o Filho e o Espírito?] –
Nem monge, nem executivo (pág. 96. Ed. Ultimato, 2011).
Amor:
Para que oramos? Por que o buscamos? Para ter apenas orientação e poder? Não o
amamos? E como podemos amar, sem ansiar por sua presença? Por simplesmente
estarmos quietos em Sua companhia amorosa? Aqueles que amam a Deus o buscam por
amor, não por outras coisas. Mesmos a santificação não é um projeto nosso para
elevar nossa autoestima ou nos livrar da culpa, mas um ato contínuo de amor a
Ele, para agradá-lo e glorificá-Lo. Neste sentido, orar é, antes de tudo, um
diálogo com o Pai que amamos e que nos ama. É nesse contexto de amor que a
intercessão, a petição e a orientação e poder encontram sentido. Amamos quem
Ele ama e, por isso, não podemos deixar de interceder. Reconhecemos o seu amor,
o seu interesse em nosso bem estar, o seu enorme anseio de exercitar a compaixão
por nós, por isso pedimos que Ele tome conta de nós. Amamos a Ele e queremos
vê-Lo glorificado e exaltado por isso pedimos poder e orientação.
Assim, que a oração seja um encontro simples e
amoroso com o Pai que redefina a nossa agenda. E que, assim, Jesus seja não o
nosso faz-tudo; mas o nosso Senhor, a quem, por meio da oração, conhecemos e
seguimos.
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