Na 332ª edição da revista Ultimato, Ricardo Barbosa
escreveu em sua seção “Caminho do coração”: “Uma característica de viver em uma
cultura que oferece tantas possibilidades é perder o foco, não saber o que
realmente importa. Vivemos de uma forma dispersa, seduzidos por uma infinidade
de ofertas, criando uma ciranda de opções que mudam constantemente nosso olhar
de direção.
A perda de objetividade nos conduz a uma dificuldade de
integração das diferentes realidades da vida. Somos seres distraídos, ansiosos e
inquietos. A obsessão pela autorrealização, pela autossegurança e pela
autoimagem surge da necessidade de dar nitidez a um cenário desfocado”.
Qual o cenário que está desfocado quando um discípulo de
Jesus vive uma “obsessão pela autorrealização, pela autossegurança e pela
autoimagem”?
Como vimos no artigo anterior desta série, os discípulos
precisam corrigir sua visão de Jesus, pois são como o “ex-cego” que não chegou
ainda a vê-lo perfeitamente (Mc 8.22-26). O texto a seguir é o texto central
sobre o discipulado em Marcos; nele o discipulado é reduzido à sua essência.
Perder de foco a essência, é desviar-se completamente do caminho. E como
veremos, a essência é perdida quando o foco sobre Jesus é distorcido por
impressões preconcebidas.
Evangelho de Marcos 8.27-9.1
27Jesus e
os seus discípulos dirigiram-se para os povoados nas proximidades de Cesaréia
de Filipe. No caminho, ele lhes perguntou: "Quem o povo diz que eu
sou?" 28Eles responderam: "Alguns dizem que és João
Batista; outros, Elias; e, ainda outros, um dos profetas". 29"E
vocês?", perguntou ele. "Quem vocês dizem que eu sou?" Pedro
respondeu: "Tu és o Cristo”. 30Jesus os advertiu que não
falassem a ninguém a seu respeito.
31Então
ele começou a ensinar-lhes que era necessário que o Filho do homem sofresse
muitas coisas e fosse rejeitado pelos líderes religiosos, pelos chefes dos
sacerdotes e pelos mestres da lei, fosse morto e três dias depois
ressuscitasse. 32Ele falou claramente a esse respeito. Então Pedro,
chamando-o à parte, começou a repreendê-lo. 33Jesus, porém,
voltou-se, olhou para os seus discípulos e repreendeu Pedro, dizendo:
"Para trás de mim, Satanás! Você não pensa nas coisas de Deus, mas nas dos
homens".
34Então
ele chamou a multidão e os discípulos e disse: "Se alguém quiser acompanhar-me,
negue-se a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me. 35Pois quem quiser
salvar a sua vida a perderá; mas quem perder a sua vida por minha causa e pelo
evangelho, a salvará. 36Pois, que adianta ao homem ganhar o mundo
inteiro e perder a sua alma? 37Ou, o que o homem poderia dar em
troca de sua alma? 38Se alguém se envergonhar de mim e das minhas
palavras nesta geração adúltera e pecadora, o Filho do homem se envergonhará
dele quando vier na glória de seu Pai com os santos anjos". 1E
lhes disse: "Garanto-lhes que alguns dos que aqui estão de modo nenhum
experimentarão a morte, antes de verem o Reino de Deus vindo com poder".
Nos v.27-28, vemos que os discípulos já não são cegos como o povo. Eles sabem que Jesus não é João
Batista, Elias, ou um dos antigos profetas do Antigo Testamento. Eles sabem que
Jesus é o Cristo. Mas se sabem disso, por que Jesus os advertiu que não falassem a ninguém a seu respeito? A
reação de Pedro, repreendendo Jesus quando este começa a falar da cruz,
mostra-nos que Pedro e Jesus tinham visões diferentes sobre o que significa ser
o Cristo. Como vimos no artigo anterior, quem não conhece a Jesus não pode
anunciá-lo.
Então Jesus começou a ensinar-lhes que tipo de Cristo ele
é. Ele refere-se a si mesmo usando a expressão Filho do homem. Esta expressão foi utilizada no livro do profeta
Daniel (do Antigo Testamento) 7.13-14: Eu
estava olhando nas minhas visões da noite, e eis que vinha com as nuvens do céu
um como o Filho do Homem, e dirigiu-se ao Ancião, e o fizeram chegar até
ele. Foi-lhe dado domínio, e glória, e o reino, para que os povos, nações e
homens de todas as línguas o servissem; o seu domínio é domínio eterno, que não
passará, e o seu reino jamais será destruído.
Como Pedro e o povo judeu da época interpretava esta
profecia? Eles acreditavam que Deus lhes mandaria um rei que expulsaria o
Império Romano daquela região e dominaria sobre todas as nações do mundo,
trazendo um reino eterno de Deus sobre a terra, sediado em Israel, tendo o povo
de Israel como povo soberano sobre todos os povos. Quando Pedro diz que Jesus é
o Cristo, ele refere-se a isso. Ele não está inteiramente errado: Jesus é o
Cristo, portanto rei soberano sobre toda a humanidade. O problema é que quando
Pedro e nós imaginamos um rei, imaginamos um ser vitorioso e invencível; alguém
que vence pela força e poder.
Só que Jesus não é esse tipo de Cristo. Ele é um tipo
rejeitado pelos religiosos da época, um tipo que morre numa cruz (o tipo mais
humilhante de morte que você poderia sofrer naqueles tempos). Quando Pedro ouve
isso, ele chama Jesus à parte e começa a repreendê-lo. “Onde já se viu uma
coisa dessas? Nunca isso vai acontecer com o Senhor!” Ele não consegue conceber
Jesus, o Cristo, o Soberano Rei, nesta situação tão humilhante. O v.38 sugere
um sentimento de vergonha nas palavras de Pedro.
No entanto, esta postura não condiz com um discípulo de
Jesus, mas sim com um escravo de Satanás, por isso a resposta de Jesus: Para trás de mim, Satanás! Você não pensa
nas coisas de Deus, mas nas dos homens. Isso porque a obsessão por poder,
por impor sua vontade (aquilo que Nietzche propunha que todos fizéssemos), por autorrealização
(aquilo que Sartre propôs), pela autossegurança e pela autoimagem é o caminho
dos homens. Porém a resposta de Jesus nos diz que esse caminho não tem origem
humana, mas sim diabólica.
Em contrapartida, o caminho de Jesus é diferente. Ele
possui no centro do seu percurso uma cruz. Se
alguém quiser acompanhar-me, negue-se a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me
(v.34). Jesus está seguindo este caminho. E se você seguí-lo, chegará – sem qualquer
dúvida – à cruz. Ela é a essência do caminho de Jesus. Contorne a cruz e você
sairá completamente do caminho. Volte para o caminho em qualquer ponto e você
encontrará a cruz. Ela mata o nosso velho homem pecaminoso e nos possibilita
seguirmos (sermos como) Jesus. Por isso, a necessidade de negar-se.
Apesar da importância da cruz, muitos se ressentem dela.
Acham que tal ato vai contra eles mesmos (o que costumam chamar seu “eu”).
Estão tão influenciados pela propaganda atual de autorrealização que qualquer
ideia de ir contra seus próprios anseios e interesses é pecado a seus próprios
olhos. Aceitariam qualquer proposta que parecesse fazê-los decentes, bondosos e
grandiosos, caso isso se ajustasse aos que eles já têm buscado, ao que eles
pensam ser eles mesmos (o que a psicologia chama de self). Querem salvar
a sua vida e a acabam perdendo (v.35). Parecem ter se esquecido que fazemos
muitas coisas reprováveis; que o ódio, a amargura, a inveja, a manipulação, a
lascívia e o egoísmo contaminam até os atos mais “altruístas”, quando são direcionados
não por compaixão (que significa sentir o sofrimento alheio), mas por um anseio
de autorrealização (sentir-se bem consigo, sentir-se uma boa pessoa) – o que
explica eles serem muitas vezes pontuais, de curta duração, impulsivos,
sujeitos a uma enorme frustração, muitas vezes disfuncionais (sem eficácia
real) e produtores de dependência a quem age (ao invés de autonomia em quem
recebe).
Por isso, nos v.36-37, Jesus nos mostra o quanto se apegar
a si mesmo (salvar sua vida, projetos, interesses...) é um mau negócio. Ele é
bom durante um tempo, mas acaba rápido (é como só ter dinheiro para uma entrada
da montanha-russa). Mas perder a sua vida
por minha causa e pelo evangelho produz salvação, nova vida, vida eterna. Ao
invés disso, Jesus nos instrui a sofrermos o que ele sofreu na cruz a fim de
recebermos algo que vale mais que o mundo
inteiro (v.36). Ele nos propõe trocar o nosso mau negócio pelo Seu bom
negócio.
Mas quão poucos são os que seguem por este bom caminho! A
maioria dos chamados crentes parecem encaixar-se na descrição de Tomás de
Kempis, em Imitação de Cristo: “Muitos
apresentam-se a Jesus, agora, como apreciadores de seu reino celestial; mas
poucos querem levar a sua cruz. Há muitos desejosos de consolação, mas poucos
de tribulação; muitos companheiros à sua mesa, mas poucos de sua abstinência.
Todos querem gozar com ele, poucos sofrer por ele alguma coisa. Muitos seguem
Jesus até o partir do pão, poucos até beber o cálice da paixão. Muitos veneram
seus milagres, mas poucos participam da ignomínia da cruz. Muitos amam a Jesus
enquanto não encontram adversidades. Muitos O louvam e bendizem, enquanto
recebem d’Ele algumas consolações; se, porém, Jesus se oculta e por muito pouco
os deixa, caem logo em murmurações e desânimo excessivo.” Somos de fato muito
mais discípulos de nós mesmos do que de Jesus. Pois assim como Pedro, vemos um
Jesus que é apenas Rei e não um “ex-crucificado”. Se nos esquecemos de que o
caminho de Jesus é o caminho da cruz, como podemos seguí-lo? Quem crê em um
Jesus que não passou pela cruz, não pode negar a si mesmo, tomar sua cruz e
seguir a Jesus. Assim, torna-se discípulo de si, dos homens e de Satanás,
salvando sua própria alma, ganhando o mundo inteiro para depois perdê-lo.
Isso nos traz problema ainda mais grave. Pois Jesus diz que
fazer isso é perder a própria alma. Isso é mais bem explicado no v.38: Se alguém se envergonhar de mim e das minhas
palavras nesta geração adúltera e pecadora, o Filho do homem se envergonhará
dele quando vier na glória de seu Pai com os santos anjos. Paul Freston, em
seu livro “Nem monge, nem executivo”, ajuda-nos a entender o processo da
vergonha: “A comparação com a cruz tinha, evidentemente, outro sentido: implicava
rejeição, perda de respeitabilidade, morte às ambições. A crucificação da velha
natureza, fazendo morrer o pecado. Carregar a cruz, então, é uma atitude que
desemboca numa série de ações...No entanto, vivemos em sociedades que têm seus
próprios valores. Por isso, a vergonha
(v.38), o medo de ir contra a maré, é um motivo forte para querer ‘salvar a
vida’. A vergonha nos leva a nos afastar de alguém, como um político manobrando
para separar-se a tempo de um governo desgastado”(adaptado). Aquele que nega Jesus
diante dos homens tem sua participação no seu Reino negada por Jesus quando
este vier na glória de seu Pai com os
santos anjos. O destino é perder a alma; ir para o inferno. Pois o Reino de
Jesus substitui, pouco a pouco, o “mundo
inteiro” dos homens “sem alma” e de Satanás, até o dia em que o fará
plenamente.
No entanto, quem
perder a sua vida por minha causa e pelo evangelho, a salvará. Isto nos
levará a participarmos do seu Reino, o que nos é garantido pelo próprio Jesus
em Mc 9.1: E lhes disse: "Garanto-lhes
que alguns dos que aqui estão de modo nenhum experimentarão a morte, antes de
verem o Reino de Deus vindo com poder". Ele disse isso, pois muitos
veriam a Jesus ressurreto três dias após a sua crucificação. A ressurreição
sinalizada pelos milagres de Jesus inicia o Seu reinado de salvação neste
mundo. Não fosse essa participação em vida no Reino de Deus, neste mundo, a cruz
esmagaria a nossa existência e amargaria o discipulado de Jesus.
Isto nos lembra as palavras de João Calvino, em seu “A verdadeira
vida cristã”:
“Posto que só é do
nosso agrado aquilo que imaginamos proveitoso e próspero para nós, nosso Pai
misericordioso nos conforta ensinando-nos que é necessário levarmos a cruz para
promover a nossa salvação.[...]
A conclusão dessas
considerações é que quanto mais somos oprimidos pela cruz, maior será a nossa
alegria espiritual; e inevitavelmente a essa alegria se junta à gratidão.
Se o louvor e a ação
de graças ao Senhor devem surgir de um coração alegre e rejubilante, e não há
nada que deva reprimir tais emoções, então é evidente que Deus neutralizará a
amargura da cruz por meio da alegria do espírito”.
Por isso, a vida de
cruz não é amarga; o negar-se a si mesmo por Jesus, e em Jesus, não leva à
depressão; o seguir a Jesus (embora acarrete sofrimento e rejeição dos homens)
é vida, salvação e alegria.
Concluindo, buscamos a nossa autorrealização, conforto (autossegurança)
e popularidade (autoimagem), quando perdemos o foco no Jesus que passou pela
cruz. Tomemos o Seu bom caminho da cruz a fim de participarmos do Seu Reino em
vida, salvando nossas almas na cruz e ressurreição de Jesus, como o apóstolo
Paulo o qual desejou conhecer [Jesus]
Cristo, o poder da sua ressurreição e a participação
em seus sofrimentos, tornando-me como ele em sua morte para, de alguma forma,
alcançar a ressurreição dentre os mortos (Filipenses 3.10-11).
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