quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

O caminho do discipulado 3 - Vendo o Filho amado


Continuando a série de revelações sobre Jesus, vemos que Marcos nos leva a um passo seguinte a respeito da natureza do Cristo. Ele nos conduz a um acontecimento que ocorre seis dias depois do discurso apresentado no artigo anterior. Este modo de expressar o tempo em que tal fato ocorre mostra sua ligação com o anterior, não apenas temporal, mas também teológica. Dizer que Jesus é o Cristo crucificado não é o suficiente; precisamos dar um passo a mais a fim de seguirmos Jesus verdadeiramente.
Mc 9.2-13
2Seis dias depois, Jesus tomou consigo Pedro, Tiago e João e os levou a um alto monte, onde ficaram a sós. Ali ele foi transfigurado diante deles. 3Suas roupas se tornaram brancas, de um branco resplandecente, como nenhum lavandeiro no mundo seria capaz de branqueá-las. 4E apareceram diante deles Elias e Moisés, os quais conversavam com Jesus.
5Então Pedro disse a Jesus: "Mestre é bom estarmos aqui. Façamos três tendas: uma para ti, uma para Moisés e uma para Elias". 6Ele não sabia o que dizer, pois estavam apavorados.
7A seguir apareceu uma nuvem e os envolveu, e dela saiu uma voz, que disse: "Este é o meu Filho amado. Ouçam-no!" 8Repentinamente, quando olharam ao redor, não viram mais ninguém, a não ser Jesus.
9Enquanto desciam do monte, Jesus lhes ordenou que não contassem a ninguém o que tinham visto, até que o Filho do homem tivesse ressuscitado dos mortos. 10Eles guardaram o assunto apenas entre si, discutindo o que significaria "ressuscitar dos mortos". 11E lhe perguntaram: "Por que os mestres da lei dizem que é necessário que Elias venha primeiro?" 12Jesus respondeu: "De fato, Elias vem primeiro e restaura todas as coisas. Então, por que está escrito que é necessário que o Filho do homem sofra muito e seja rejeitado com desprezo? 13Mas eu lhes digo: Elias já veio, e fizeram com ele tudo o que quiseram, como está escrito a seu respeito".

Somos levados com os discípulos mais íntimos de Jesus a uma aula VIP (em um alto monte, onde ficaram a sós). Lá Jesus muda de forma, revelando-se como alguém incomum, sobrenatural, visto suas roupas tornarem-se brancas como nenhum lavandeiro no mundo seria capaz de branqueá-las.
Não bastasse isso, para completar a cena, Moisés e Elias (duas grandes figuras do Antigo Testamento) conversam com Jesus. Moisés, aquele por meio de quem Deus deu Sua Lei ao povo judeu. Elias, o primeiro profeta levantado por Deus para trazer Seu povo de volta à obediência à Sua Lei. Assim, Moisés representa a Lei de Deus e Elias, todos os Seus profetas. Juntos eles representam todo o Antigo Testamento, como no evangelho de Lucas 24.27: E começando por Moisés e todos os profetas, explicou-lhes o que constava a respeito dele  [Jesus Cristo] em todas as Escrituras [Antigo Testamento]. Com isso, não se quer dizer que Mc 9.2-13 seja uma ficção ou alegoria, mas que há um sentido teológico neste relato.
A fim de entendê-lo é preciso entender primeiro a reação de Pedro nos v. 5-6: Então Pedro disse a Jesus: "Mestre é bom estarmos aqui. Façamos três tendas: uma para ti, uma para Moisés e uma para Elias". Ele não sabia o que dizer, pois estavam apavorados. Em primeiro lugar, Pedro o chama de Mestre (Rabi), considerando-o com a mesma dignidade de um grande mestre. Porém este não deixa de ser um título que poderia ser usado sem dificuldade alguma para referir-se a qualquer grande homem, como João Batista, por exemplo. Em segundo lugar, vemos que Jesus tem seu status elevado, mas fica na mesma posição de Moisés e Elias. Pois poderíamos perguntar: por que não fazer apenas uma tenda ao invés de três? Jesus, Deus encarnado, não merece distinção de quaisquer pessoas, mesmo Moisés e Elias? Terceiro, a reação de Pedro é emocional, condicionada pelo medo, irracional: Ele não sabia o que dizer, pois estavam apavorados [aterrorizados]. O terror dos discípulos provinha de um reconhecimento da visão sobrenatural que viam. Porém ainda estavam lidando com conceitos anteriores e não conseguiram perceber a distinção que deveriam atribuir a Jesus.
Embora a fala anterior pareça incoerente, é preciso entender que Marcos faz questão de dizer que eles não sabiam o que dizer. O terror, ocasionado pela visão da época que via Deus como um ser terrificante, incompreensível e não tão perdoador como pensamos hoje (como diz David Bosch, em Missão Transformadora, pág. 140.), tomou-o por completo. O sobrenatural da visão e a visão costumeira de Jesus entraram em conflito e o melhor que ele pôde fazer foi tentar arrumar um bom motivo para estarem ali. Pois essa não é uma situação confortável, como as pessoas costumam pintar neste texto, como se Pedro estivesse vivendo o nosso céu (do século XXI) na terra e nunca quisesse sair dali. Muito pelo contrário. É bem possível que sua vontade de ser útil se assemelhasse à de Matinho Lutero, que desprotegido num campo aberto em meio a trovões e relâmpagos, prometeu à Santa Catarina que se tornaria monge, caso ela o mantivesse são e salvo.
De fato, sempre que não sabemos com o que estamos lidando, podemos cair em ambos os perigos: confusão conceitual e religiosidade emocional. A primeira surge da dificuldade em mudar ou abandonar conceitos errôneos e todo professor ou pessoa disposta a transformar a vivência religiosa das pessoas esbarra neste problema. Eu mesmo fico surpreso ao tentar ensinar às pessoas conceitos opostos àqueles que elas sempre carregaram. Ao fim de uma aula elas dizem: “muito bom! Agora eu entendo esse texto!”. Semanas depois, eu as vejo dizendo a mesma coisa de antes! Às vezes parece-me que as pessoas carregam grandes mosaicos conceituais, juntando coisas sem refletir sobre elas até que chegam a possuir apenas uma imagem incoerente e fragmentada. Isso leva, por exemplo, a dizer que dependem inteiramente de Deus e creem em Sua soberania, providência e amor e passar noites em claro imaginando formas de resolver problemas que nem sabem se existem (reação clara de uma cultura que nos ensinou que tudo depende de nós mesmos, que a vida resume-se ao que podemos conquistar e usufruir).
A segunda é fruto de uma visão opressiva de Deus. Um Deus que está observando cada passo, esperando só um deslize para nos pegar! Medo e culpa são ótimos elementos para levar as pessoas onde queremos. Por isso, é de se questionar se muito de nosso ativismo religioso não passa de um desejo de ser bem visto por Deus e pelos outros pelo medo de ou não sermos bons o bastante, ou inadequados por completo. Como uma espécie de compensação por uma vida licenciosa (apenas numa área sem importância, claro!), “servimos a Deus” de forma exemplar, com a sensação de que, no fim do dia, “fizemos mais bem do que mal”.
Diante dessas confusões e sentimentos, a nuvem aparece os envolvendo e dela sai uma voz revelando quem é Jesus. Nisso, somos levados ao Antigo Testamento, principalmente em Êxodo e Números, onde vemos Deus se mostrando e ocultando que por meio dessa forma. Desse modo, Deus Pai oferece uma imagem correta de Jesus e nos mostra como interagirmos com Ele, tirando-nos da confusão conceitual e nos livrando da religiosidade emocional.
Ela diz que Jesus é o Seu Filho amado. O leitor de Marcos imediatamente é transportado ao batismo de Jesus, quando uma voz dos céus disse-lhe: Tu és o meu Filho amado, em ti me agrado (Mc 1.11); e ao primeiro versículo de todo o livro: Princípio do evangelho de Jesus Cristo, o Filho de Deus (Mc 1.1). Jesus é Deus, Filho de um Pai amoroso. Para o cristão e o judeu da época, não se trata de dois deuses diferentes, mas de um mesmo Deus. Explicar como um pode ser três (Pai, Filho e Espírito) está muito além de nossos interesses. Basta-nos aceitar que Eles são iguais em essência, porém distintos como pessoas que se relacionam e se amam mutuamente. Este amor é o mesmo que leva Jesus a sofrer muito, ser rejeitado com desprezo (v.13) ao tomar nosso lugar na cruz sofrendo nossa punição a fim de nos garantir o perdão dos pecados e ressuscitar dos mortos (v.9) a fim de nos permitir a participação no Seu Reino, o qual vem com poder para aqueles que creem nEle e não se envergonham da Sua humilhação (Mc 9.1).
Nisto vemos um Deus que ao contrário de nos produzir terror, mostra-se amoroso, libertando-nos da religiosidade emocional. Afinal de contas, o que pode nos tornar mais tranquilos do que vermos nosso inimigo dizendo: eu te amo a ponto de dar meu filho na cruz por você? Qual pode ser melhor remédio para a culpa (e a consequente baixa autoestima) do que receber do próprio Juiz a declaração: PERDOADO? Ao contrário dos placebos “espirituais” de nossa época que tentam nos aliviar nos chamando de divinos, nos convocando à autorrealização (prometendo a liberdade de nos satisfazermos), ou nos dizendo como evitarmos o fim do mundo; o perdão e amor divinos agem na raiz de nosso medo de morrer e de sermos revelados culpados, caso descobertos a um olhar íntimo, a medida que nos oferecem uma vida eterna de amor mútuo com Deus.
A respeito desse Jesus, a voz nos diz Ouçam-no! Ora, “Ouvir é obedecer”, como bem sabem os calormanos de C.S. Lewis (em O cavalo e seu menino, uma das Crônicas de Nárnia). Este é o sentido desta ordem: “Vocês obedeciam a Lei e os profetas, agora obedeçam a Jesus”. Por isso, quando olharam ao redor, não viram mais ninguém, a não ser Jesus. Não que agora iremos jogar a Lei e os profetas (o Antigo Testamento) no lixo e usaremos só o Novo (as vidas e as palavras de Jesus e seus apóstolos). Mas interpretaremos o Antigo à luz do Novo, pois Jesus não está no mesmo nível que Moisés, Elias, Maomé, Buda, o hinduísmo, Alan Kardec, as religiões afro, ou a espiritualidade contemporânea (o que inclui cada pensamento nosso sobre a realidade, nós e Deus); mas sim: Ele está muito acima de tudo isso. Ele é Deus criador, sustentador e restaurador de todas as coisas, seres (naturais ou sobrenaturais de quaisquer espécies) e pessoas. É o soberano, o Rei dos reis, o Senhor dos senhores. Todos devem obedecê-lo e receber dele todos os conceitos sobre quaisquer coisas, assuntos ou matérias.
Desse modo, a simplificação de Jesus pode substituir o mosaico desnorteador, trazendo-nos sentido (direção e significado) à nossa existência. Ao contrário de ingenuidade, a simplificação de Jesus nos fará reconhecer o pecado (em nós e no mundo) que custou o sangue de Jesus na cruz. Ao contrário da alienação, teremos a verdade revelada daquele que criou e conhece perfeitamente todas as coisas. Ao contrário do pessimismo paralisante ou da esperança tola, teremos uma “esperança viva” (1ª carta de Pedro 1.3) naquele que está restaurando todo o mundo e as pessoas que creem nEle para uma vida eterna, num mundo perfeito, e que nos chama a participarmos não só deste produto final, como também do seu processo de produção.
Assim, sem Jesus, somos alvo da confusão conceitual e da religiosidade (espiritualidade) emocional; vivendo perdidos; buscando, em mil lugares, formas “espirituais” de sufocar o medo (da morte, do imprevisto, do 2012 etc.), a culpa e a baixa autoestima; mudando de crenças conforme a direção do vento ou criando mosaicos que nos tornam incoerentes em nosso discurso, comportamento e identidade. Jesus, Deus, o Filho amado, traz-nos o amor do Pai no seu sofrimento, rejeição e ressurreição. Que seu amor nos liberte do medo e da culpa. Que ele nos leve a O obedecermos, recebendo dEle nossos conceitos e que assim nossa vida ganhe sentido e coerência.

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