Na série anterior, vimos o chamado
que Jesus faz às pessoas para que sejam seus discípulos. Embora isso devesse
ser o suficiente para levar-nos pelo caminho certo, muitas vezes nos desviamos por
caminhos errados. Como um peregrino, temos sempre a possibilidade de termos
entendido errado as instruções que nos foram dadas, tomar atalhos que nos
desviam do caminho, ou escolher caminhos mais fáceis e agradáveis.
Algo assim parece ter ocorrido
com os discípulos. Pois Marcos 8.22-10.52 trata da incapacidade dos discípulos
de verem Jesus como Ele realmente é, tornando-os incapazes de anunciá-lo sem
levar as multidões a um entendimento errado sobre Jesus e sobre por que
deveriam tornar-se, elas também, discípulas de Jesus. Assim, este trecho (que
muitos consideram central no evangelho de Marcos) começa e termina com a cura
de dois cegos. Um em duas etapas, o outro em apenas uma.
Mc 8.22-26
22Eles foram para Betsaida, e algumas pessoas trouxeram um
cego a Jesus, suplicando-lhe que tocasse nele. 23Ele tomou o cego
pela mão e o levou para fora do povoado. Depois de cuspir nos olhos do homem e
impor-lhe as mãos, Jesus perguntou: "Você está vendo alguma coisa?"
24Ele levantou os olhos e disse: "Vejo pessoas; elas
parecem árvores andando".
25Mais uma vez, Jesus colocou as mãos sobre os olhos do
homem. Então seus olhos foram abertos, e sua vista lhe foi restaurada, e ele
via tudo claramente. 26Jesus mandou-o para casa, dizendo: "Não
entre no povoado”.
A cena é, por um lado, comum nos
evangelhos: as pessoas chegam a Jesus suplicando-lhe que Ele cure alguém. No
entanto, a cena também é estranha: Jesus cospe no seu paciente (o mesmo ocorre
na cura do surdo e gago, em Mc 7.31-37, texto tão semelhante com o nosso que
chegam a estabelecer alguma correspondência). Além disso, a cena é perturbadora
para alguns, pois parece que Jesus falhou na primeira tentativa.
Considerando que a ideia de um
Jesus que falha, ou de um Jesus imperfeito ou limitado, é estranha a todo
evangelho de Marcos (e a todo o Novo Testamento!) – e que Jesus não é uma
máquina que precisa de aquecimento antes de funcionar direito – por que Marcos
apresentaria um acontecimento tão incoerente com tudo que escreveu antes e
depois disso? Pois Ele começa seu evangelho dizendo que Jesus é o Filho de Deus
(Mc 1.1); passa boa parte do começo desse livro dizendo que Jesus tem autoridade
sobre a natureza, doenças, demônios, Lei etc.; diz, após a cura do surdo e gago,
que o povo maravilhou-se, dizendo que “Ele faz tudo muito bem” (Mc 7.36). Por
que então isso?
Como dito acima, as curas dos dois
cegos são o começo e o final (a capa “da frente” e a “do fim” do livro) de um
trecho considerado como central para o evangelho de Marcos, no qual os
discípulos não O veem claramente e precisam ter seus olhos abertos, a fim de
vê-lo como Ele realmente é. A cura deste nosso primeiro cego demonstra essa
realidade.
Percebemos que no v.24 algo
mudou, ele não é mais tão cego, pois ele mesmo diz: "Vejo pessoas; elas parecem árvores andando". Mas só
conseguir diferenciar pessoas de árvores pelo fato de que as primeiras andam e
as últimas não, parece-nos algo um tanto quanto defeituoso. De fato, não podemos
nos contentar com isso. Nem Jesus.
No entanto, a situação deste
nosso cego no v.24 é a mesma situação das pessoas no evangelho de Marcos,
incluindo os discípulos! Assim, o povo que viu Jesus curar o surdo e gago na
região de Decápolis, chegou efetivamente a uma conclusão correta: “Jesus faz
tudo muito bem”; mas não conseguiram vê-lo como Messias (Mc 7.36,37). Também Pedro
viu Jesus como Messias, mas não entendia que tipo de Messias é Jesus (Mc
8.29-33). E, por várias situações semelhantes, os discípulos são repreendidos
por Jesus dos capítulos 8-10 de Marcos porque, embora sejam seus discípulos
(aqueles que deveriam conhecê-lo e imitá-lo), estão sempre fazendo, dizendo e
pensando o contrário do que Jesus deseja deles! Eles estão, como se diz, dando
sempre “bola fora”. Ora, se os discípulos mais próximos fazem isso, o que se
dirá do povo que só o conhece de longe!
O que se dirá em nossos dias! Pois
uns tratam Jesus como milagreiro; outros como um espírito evoluído que veio nos
dar um bom exemplo; livros são escritos retratando Jesus como um líder,
psicólogo ou pedagogo; os que buscam o Jesus histórico (sem essa “coisa” de
milagres, filho de Deus, salvador...) tratam-no como um mestre de bons modos ou
um revolucionário. Não há limites para darmos a Jesus a cara que queremos. A
cara que nos convém. Como será mostrado nos artigos seguintes desta série, os
discípulos de Jesus fizeram algo assim. Olharam Jesus com os olhos de sua época
e o deformaram.
Mas Jesus não se contentou com
essa visão parcial que seus discípulos tinham dEle. Assim como curou o cego
completamente, – de modo que seus olhos
foram abertos, e sua vista lhe foi restaurada, e ele via tudo claramente – Ele
está disposto a curar todos os seus discípulos (eles e nós) da sua cegueira
espiritual.
Porém estejamos avisados: como
no caso do nosso cego, a cura é obra de Jesus, não nossa. Assim, não podemos
nos aproximar de Jesus com nossas concepções distorcidas de quem é Jesus (o
maior líder, o maior psicólogo, o Jesus histórico, espírito evoluído...), pois
elas nos levarão ao engano. Mas devemos deixar que Jesus nos leve a uma nova
compreensão de si mesmo. Por isso, ter uma melhor visão sobre Jesus não pode
acontecer em nós simplesmente por nosso esforço, estudo, pesquisa, ou quaisquer
manifestações sobrenaturais que se possa imaginar. Ou Jesus mesmo revela-se a
nós ou podemos voltar para casa e tocar a nossa vida como sempre fizemos. É certo
que Jesus usa a Bíblia, como acontece com os discípulos no caminho de Emaús,
onde Jesus começando por Moisés e todos
os profetas [o Antigo Testamento],
explicou-lhes o que constava a respeito dele em todas as Escrituras (Lc
24.27). Também usa outros discípulos, como quando Filipe explicou as escrituras
e anunciou Jesus ao eunuco etíope (Atos 9.35). Ele promete usar a igreja, quando
essa vive em amor (Jo 13.34,35). Além de nos ensinar através do Espírito Santo
(Jo 14.26). Mas esta correção da nossa visão é sempre obra de Jesus, não nossa.
Nossos esforços para ver ou para ajudar outros verem só têm eficácia, quando
Jesus já está fazendo algo.
Assim, o caminho do discipulado que
Jesus nos traz não é uma série de tarefas ou passos para imitar Jesus (“faça
isso” e “não faça aquilo”), mas conhecê-lo como Ele realmente é. Deste modo, o
relacionamento (e o aprendizado) com Ele será realizado sobre o fundamento
certo. Assim, também poderemos anunciá-lo sem levar as pessoas ao erro.
Este é de fato um segundo
aspecto importante deste texto. Pois Jesus o
levou para fora do povoado e após curá-lo mandou-o para casa, dizendo: "Não entre no povoado”. E veremos
que muitas outras vezes isso ocorre nos evangelhos. Isso ocorre porque as
pessoas (seja pelos “pré-conceitos” de quem ouve ou de quem anuncia) não
entenderiam quem é Jesus. Elas encaixariam Jesus em seus moldes pré-fabricados
de Deus, Messias, etc.
Todos fazemos isso em algum
momento. Dizemos “se Jesus é Deus, deve agir assim”, “se Deus fosse bom, não
deixaria aquilo acontecer”, “se quer me convencer, deve dar-me tal prova”. E
assim tentamos forçar Jesus a entrar em nossos próprios preconceitos. Não o
deixamos ser quem Ele é. E voltamos para casa frustrados. Por isso, devemos de
tempos em tempos rever se nossos conceitos sobre Jesus são os conceitos que o
próprio Jesus nos apresenta através do evangelista Marcos. Só assim, podemos
evitar os erros de nos desviarmos do caminho do discipulado e anunciarmos um
Jesus falso, impotente e indigno de nossa devoção. Esta série tem esse
propósito. Vamos conhecer Jesus?
Mas espere! Nossa jornada não
pode ser vista como um empreendimento nosso. Nem como um simples passatempo, ou
satisfação de uma curiosidade impessoal. Ela inicia-se (e continua) com a
súplica constante dos cegos que anseiam ver, tal como no v.22. Ela depende de
Jesus. Supliquemos e deixemos que Ele nos mostre como quer se revelar, do
jeito, na hora e no ritmo que Ele mesmo quer.
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