quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

O caminho do discipulado 5 - Inadequados, porém amados

Mc 10.13-16: 
13Alguns traziam crianças a Jesus para que ele tocasse nelas, mas os discípulos os repreendiam. 14Quando Jesus viu isso, ficou indignado e lhes disse: "Deixem vir a mim as crianças, não as impeçam; pois o Reino de Deus pertence aos que são semelhantes a elas. 15Digo-lhes a verdade: Quem não receber o Reino de Deus como uma criança, nunca entrará nele". 16Em seguida, tomou as crianças nos braços, impôs-lhes as mãos e as abençoou. 

É possível que, por seguirmos Jesus Cristo, tornemo-nos um grupo sectarista. Se não em nossas escolhas de companhia, pelo menos em nossas mentes. Buscar a Deus com devoção, numa luta contínua para sermos pessoas amorosas como Ele é, pode dar ocasião – muitas vezes – a um orgulho oculto. Desse modo nos vemos como mais espirituais ou melhores que os outros, simplesmente porque, aos nossos olhos, somos mais adequados que os outros para seguirmos Jesus. E podemos chegar ao ponto em que passamos a achar que ao contrário dos outros merecemos ser salvos. 

Embora, aparentemente, a ação dos discípulos não chegue a tanto, ela certamente não está longe disso. Eles estavam acostumados a ver prostitutas e pecadores achegando-se a Jesus (Mc 2.13-17), mulheres ganhando nova dignidade em seu meio e até gentios (não-judeus) completamente escravizados pelos demônios tornarem-se mensageiros dEle (Mc 5.1ss). Poderíamos imaginar que, a essa altura, os discípulos tivessem entendido que o Reino de Jesus era para todos. 

Mas o texto nos mostra que, para esses mesmos discípulos, as crianças não estavam aptas a participarem deste glorioso Reino. Não fosse assim, não teriam repreendido as que as traziam. Nem Jesus teria dito: o Reino de Deus pertence e receber o Reino de Deus. A questão é que, para eles, as crianças eram completamente inaptas ou inadequadas para receberem o Reino. 

Para entendermos isso, precisamos reconhecer que estamos falando de outra cultura. Para os judeus da época, embora os filhos fossem considerados como bênçãos divinas aos pais, não possuíam a grande importância que recebem hoje. Segundo o teólogo Joachim Jeremias (Teologia do Novo Testamento), naquela época as crianças eram menosprezadas, sendo tratadas em documentos da época juntamente com os “surdos-mudos e os dementes”, visto os judeus considerarem os três grupos como pessoas que não estão em plena posse das faculdades mentais” (pág. 332, nota 278). Outros documentos, listados por Jeremias, dão o mesmo valor religioso às crianças que os dos “cegos, gentios, mulheres, escravos, disformes, hermafroditas, coxos, doentes, velhos e aleijados”. 

Desta forma, fica claro o preconceito dos discípulos em relação às crianças, as quais não tem, aos seus olhos, valor suficiente para participarem do Reino de Jesus. Ora, se há um grupo indigno de Jesus, isso decorre da ideia de que há um grupo digno dEle. Não é à toa que, por duas vezes (Mc 9.33-37; 10.35-45), Jesus tem de tratar do sério problema da discussão dos discípulos que disputam para saber quem é o maior. E para expressar o quanto o menor dos seus discípulos é digno de honra, Ele compara os “menos importantes” às crianças (9.37). 

Diante da indignação de Jesus (v.14), deveríamos considerar se nós mesmos não “impedimos” pessoas de receber o Seu Reino. Qual a nossa reação diante dos homossexuais? Servimos os deficientes mentais, como Henri Nouwen fez? Consideramos a possibilidade de um projeto de missão integral nas cadeias? Nas zonas de prostituição? Um esquizofrênico pode participar do Reino? Como essas pessoas seriam tratadas caso aparecessem em nossas igrejas? Elas voltariam várias vezes? Perguntariam sobre como tornar-se membro? 

Ao que parece, essas pessoas são bem-vindas, caso “comportem-se”, deixem seus hábitos pecaminosos do lado de fora e estejam “limpas e bem cheirosas”. Pois “não queremos ninguém contaminando um ambiente tão santo quanto aquele que promovemos”. 

Acaso Cristo não se indignaria com nosso comportamento? Não seríamos considerados como quem o abandona e o trata sem a devida misericórdia (Mt 25.31-46)? Não deveríamos então ser mais acolhedores? Darmos prioridade amorosa a esses grupos marginalizados? 

Se quisermos ser discípulos de Jesus, devemos receber aqueles a quem Ele recebe. O que Jesus demonstra nessa e em outras passagens é que não há pessoas inadequadas para o seu Reino. Pobres, incultos, prostitutas, pecadores, cobradores de impostos corruptos, ricos, fariseus, pescadores, zelotes, mulheres e crianças...O Reino é para todos. 

Mas talvez seria melhor dizer que, na verdade, não há pessoas adequadas para participarem do Reino. Por isso, Jesus disse: "Deixem vir a mim as crianças, não as impeçam; pois o Reino de Deus pertence aos que são semelhantes a elas. Digo-lhes a verdade: Quem não receber o Reino de Deus como uma criança, nunca entrará nele". Ou seja, o Reino de Deus pertence aos que não são dignos dele, aos sem condição de recebê-lo. 

Diante dessa realidade, só nos resta recebermos o Reino de Jesus, reconhecendo nossa indignidade. Reconhecendo que Jesus oferece Seu Reino a pessoas sem o valor desejado, as quais têm por certo que, não fosse a misericórdia de Jesus, seriam imediatamente lançadas ao inferno. 

Aqui vemos a maravilhosa graça de Jesus. Pois Ele dá o Seu Reino a pessoas dignas de serem afastadas de Sua gloriosa presença. Isso não é maravilhoso? Não deveria nos encher de alegria e conforto o sabermos que Jesus não tem uma lista, na entrada do céu, apenas com os nomes dos virtuosos, dos perfeitos, dos capazes e bem-sucedidos? 

Caso não entendamos que Jesus nos aceita tão somente por sua pura graça e amor, e não por nossos méritos, nunca entenderemos esta passagem. Nunca seremos libertos da vaidade, das disputas entre igrejas de “doutrinas mais rigorosas”, do sectarismo dos mais “santos”, da religiosidade frenética e compulsiva com a qual tentamos provar a nós mesmos que somos dignos de entrarmos no Reino de Deus. 

Devemos entender isso de uma vez por todas: não podemos construir um caminho para o céu; só Jesus pode. E Ele fez. Não porque merecemos; mas sim porque, apesar de não o merecermos, Ele, em seu infinito amor, deseja “nos tomar nos braços” e nos abençoar (v.16) com Seu Reino. 

Isso certamente mudará nossa relação com Deus. Poderemos finalmente descansar em Seu amor, ao invés de tentar conquistá-lo com um grande número de leituras da bíblia, de orações, de lacunas preenchidas em nossos “cartões de ponto para os cultos”, do volume de nossos dízimos e ofertas. Poderemos ter um relacionamento com Deus, no qual Ele realmente é nosso Pai, que nos ama. 

Também mudará nossas relações dentro da igreja, pois não precisaremos mais usar uma máscara aos domingos para encobrir o nosso pecado. Nem temeremos a cobrança (ou cobraremos os outros) da presença no culto, do valor do dízimo, do número de convertidos, pois amaremos o “irmão” como alguém recebido e amado por Jesus. 

Finalmente, mudará nossas relações com os desprezados deste mundo. Com os abandonados das igrejas. Com aqueles que, como diz o slogan de uma igreja, “a igreja não costuma gostar”. A Igreja de Jesus é um lugar onde pessoas imperfeitas, machucadas, desprezadas, estranhas e indesejadas são acolhidas e amadas, ou não é a Igreja de Jesus. Conseguiremos amar o pecador quando entendermos o quanto nós fomos amados por Deus, quando não passávamos de simples pecadores. 

Então, diante da possibilidade da indignação de Jesus, não coloquemos empecilhos, nem fechemos nossos olhos a todos quantos necessitam do amor de Cristo. Sejamos a Sua Igreja. Uma Igreja de redimidos, amados por Jesus em nossa indignidade.

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